- Gênero: Ficção Científica
- Direção: Lana Wachowski
- Roteiro: Lana Wachowski, David Mitchell, Aleksandar Hemon
- Elenco: Keanu Reeves, Carrie-Anne Moss, Yahya Abdul-Mateen II, Jonathan Groff, Jessica Henwick, Neil Patrick Harris, Jada Pinkett Smith, Priyanka Chopra Jonas, Christina Ricci, Lambert Wilson
- Duração: 148 minutos
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A expressão fan service deveria ser menos demonizada, diferente do que tem acontecido na atualidade. Vejam o exemplo de Matrix Resurrections, novo longa/reboot/continuação da franquia iniciada em 1999 pelas irmãs Wachowski, agora comandada somente por Lana. Um filme que em nenhum momento deixa de entrega absolutamente tudo que se queria ver diante da espera das últimas duas décadas em relação ao universo, mas que não se prende ao conceito, indo além no pensamento de cinema sem perder visibilidade dos iniciados. Fique claro: não é recomendável assistir a nova produção sem o conhecimento prévio da mitologia criada, mas o filme não se basta enquanto produto derivado, e esse talvez seja o grande acerto dessa estreia.
Inteligente, a cineasta, que estreia em direção solo depois de 25 anos da companhia da irmã, entende que não basta apenas esgarçar ideias que já tinham sido devidamente assimiladas pelos fãs, e distribui na sua narrativa todo um pensamento sobre cinema de larga escala através dos simbolismos que a própria mitologia difundiu, sem precisar referendar nada além de si mesma. Ainda assim, é uma ideia simples de exploração metalinguística que ela compreende como essencial para que suas colocações a respeito de uma fatia de leitura do filme se estabeleça. É um jogo não-inédito, mas que poucas vezes foi tão acertadamente utilizado, e de maneira tão atualizada com as próprias questões inerentes à obra e seus mitos.
A obra em si sempre ressaltou o valor do livre arbítrio, ainda que também o colocasse em cheque; você escolhe a vida que quer ter, a de verdade ou a de mentira, mas entenda que a mentira é o que é. Isso se acentua na nova produção, até porque 22 anos depois da estreia e em tempos de fake news, de vidas destruídas pela escolha consciente pela dúvida enganosa, o filme acentua o que é político em cena. Se o caráter inclusivo vem se tornando ainda mais evidente em longas comandados pelas Wachowskis, aqui o emprego que Lana faz de algumas vozes simbólicas é ainda mais perceptível. Neil Patrick Harris e Jonathan Groff não estão em cena à toa, e o primeiro em especial tem participação que desenha todo o seu histórico e o de sua diretora, empregando ao discurso mais uma provocação social que soa muito bem-vinda.
Quando a utilização da metalinguagem, como já dito, não se torna especificamente uma brincadeira sem muita consequência, por estarmos falando justamente da franquia Matrix, que varreu os últimos 20 anos e faz parte da cinefilia de maneira geral. Colocar essa marca para se auto parodiar, rir das próprias criações e poder aumentar, com isso, seu próprio alcance é muito sagaz, além de contribuir para expandir seus alcances ainda mais. Que isso venha atrelado a uma marca que alimenta a diversidade estética, que amplia os horizontes a respeito da conversa sobre amplitude de gênero (incluindo personagens que declaram suas escolhas sexuais de maneira abrangente, em cena), e a marca só ganha em respeitabilidade.
Mas acima de tudo, Matrix Resurrections é cinema-espetáculo daqueles que nos fazem não apenas ter prazer em assistir, como acima de tudo impressiona no lugar que escolhe estar. É um filme que homenageia o modus operandi da indústria através da própria mola propulsora que ele alimenta e ratifica; o cinema de gênero funciona, como todos os outros, por paixão – embora sejam atrelados números e planilhas a lançamentos em larga escala. Ora, porque Drive my Car é um filme feito de maneira mais apaixonada que Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa? O que Lana Wachowski mostra em seu petardo é que o cinema de grandes proporções não precisa abrir mão do sentimento, assim como não abrirá da técnica, assim como não abrirá do entretenimento.
Matrix Resurrections, não podemos negar, recorre ao saudosismo por muitas vezes, mas é sacana ao colocar essas mesmas autorreferências reféns de uma narrativa espelhada enquanto serve ao público momentos requentados dos longas originais. O treinamento de kung-fu, e os personagens que o protagonizam, não passa de tentativa de reviver o projeto original, e isso acontece com alguma frequência, desde o princípio. Como o filme joga isso na cara do espectador desde a cena um, e verbaliza essa situação como sendo parte integrante da construção do roteiro, o que temos a fazer é abraçar essas repetições, e entendê-las como tais.
É curioso, ou sintomático, que no rastro de seu roteiro esteja também uma busca desenfreada por uma paixão tratada quase como ancestral. Neo e Trinity, o casal protagonista que Keanu Reeves e Carrie-Anne Moss levaram às telas pela primeira vez no longa original, tem uma necessidade de um reencontro à beira do sobre-humano. São almas afins que se encontraram e não conseguem seguir suas vidas porque sentem que falta um pedaço em sua composição. Que um longa que almeje tantos resultados seja tão anárquico em sua dedicação à metalinguagem, ao mesmo tempo em que aposta tanto no afeto – que corre desbragadamente, dos protagonistas, dos assumidos fãs de Neo/Thomas Anderson a cada vez que o encontram, de nêmesis que voltam a se encontrar – consiga encontrar amparo de público nos tempos de hoje, tempos que o filme não cansa de evocar para melhorá-lo, é um bálsamo.
Um grande momento
No palco, duas versões de uma mesma história