Falar que o Brasil é um país que é racista, que se envergonha de suas origens, que não honra quem os formou, que massacra a imagem que anos de História ajudaram a forjar à base de genocídio, escravidão e apagamento, hoje, parece ser um clichê – embora absolutamente honesto e real. Infelizmente temos que acordar para os fatos, e o posicionamento que Gabriela Barreto toma, cineasta que nos apresenta Memórias Afro-Atlânticas, mediante o tanto de atraso em reconhecimento de valores históricos ainda temos que pagar, é por si só já um êxito difícil de negar aos olhos. Independente de sua meta, Gabriela, com a ajuda da História conta uma baita história.
Baiana, Gabriela é também atriz e demonstra profunda ligação com o universo complexo que tenta moldar para o espectador. Como uma empolgante aula de História, o filme nos apresenta seu protagonista, Lorenzo Dow Turner, linguista negro norte-americano que veio a Bahia e por lá viveu entre 1940 e 1941 ao se encantar com o fruto de sua pesquisa, as religiões de matizes africanas e a língua proveniente da mesma. Em pouco mais de 70 minutos, a diretora se concentra em poucos mais acertados personagens para contar não apenas a historicidade dessa passagem pelo país como também a origem do iorubá, do banto e de tantas etimologias clássicas, revelando sutialmente a construção de uma identidade cultural.
O que poderia ser enfadonho como a apresentação de um enredo de escola de samba, se transforma num passeio imagético pelo passado que se reproduzem no presente, da maneira mais literal possível. Ciceroneado pelo etnomusicólogo Xavier Vatin, que descobriu as pesquisas de 80 anos atrás de Turner e se apaixonou pela possibilidade de reintegrar vozes de sacerdotes à sua terra natal, Memórias Afro-Atlânticas exala a entrega e a dedicação de cada pessoa que o filme enquadra, sem deixar de fazer o mesmo pelo projeto como um todo. As decisões são muito acertadas em nos fazer próximos de cada retratado, como acessá-los às suas raízes familiares, culturais e religiosas, emoldurados pela música.
A diretora se insere em uma vertente temática (a recuperação do orgulho afro através de sua cultura ancestral) e consegue destaque em meio aos demais por não privilegiar os relatos, mas os encontros. Ainda que cada uma das narrativas desdobradas, cada capítulo da desconstruída história de Turner no país seja uma fatia suculenta, é o contato entre Xavier e os entrevistados, a ligação empática que nasce entre eles, o brilho nos olhos que surge em cada um ao ouvir as vozes de Mãe Menininha do Gantois, de Manoel Falefá ou de Joãozinho da Goméia que refletem no espectador e elevam o material já rico o suficiente, humanizando-o e difundindo um recorte histórico que nunca precisou ser escondido.
Com uma luz especial por parte de Paulo Hermida, que unifica as fotos e suas reproduções, os rituais e seus personagens, o filme refina sua captação de imagens como nem sempre em uma procedência de documentários. Dotado de uma sofisticação que não sufoca seu material humano, esse rigor imagético vem apenas mostrar que Gabriela não perde o rumo das imagens, mas sim tem sob controle sua produção, sem nunca deixar de reverenciar a própria Bahia como o local de entrada de toda essa ancestralidade negra que se incorporou no país.
Gabriela arremata sua promissora estreia com essa ponte que interliga o silenciamento de tantas gerações, ao recuperar vozes já perdidas e devolvê-las aos seus descendentes, à sua terra, às origens de sua raça e da criação do país. Ao ouvir seus filhos, seus netos, ao adentrar os espaços onde cada um daqueles líderes viveu e redecorá-los com seus criadores originais, a diretora recupera em sons o que Xavier não consegue fazer totalmente com as imagens, dando ainda mais poder e eco a figuras definidoras da cultura afro-brasileira, em encontros através do espaço-tempo.
Um grande momento
Um abraço em Xavier
[24º Cine PE – Festival do Audiovisual]