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O Animal Cordial

(O Animal Cordial, BRA, 2017)
Horror
Direção: Gabriela Amaral Almeida
Elenco: Murilo Benício, Luciana Paes, Irandhir Santos, Camila Morgado, Jiddu Pinheiro, Ernani Moraes, Humberto Carrão, Ariclenes Barroso, Eduardo Gomes, Thais Aguiar, Diego Avelino
Roteiro: Gabriela Amaral Almeida
Duração: 98 min.
Nota: 8 ★★★★★★★★☆☆

“Nenhum povo está mais longe dessa noção ritualista da vida do que o brasileiro. Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez.”
Sérgio Buarque de Hollanda

Desde as primeiras cenas de O Animal Cordial, a diretora Gabriela Amaral Almeida, que também assina o roteiro, deixa clara a sua habilidade com cinema de terror, seja na idealização e realização de planos ou na construção do suspense, por meio de trilha marcada, o uso de pouca luz ou a utilização de símbolos clássicos. A aptidão, porém, carece de exclusividade. O que se vê já foi visto e usado muitas vezes antes, mas há em todo o cenário que motiva personas e ações, algo associado ao que está além das telas e que engrandece o trabalho da cineasta e o torna, em certa medida, único.

Em um restaurante prestes a fechar, encontram-se figuras sociais típicas em suas representações e ali se estabelecem – em situações cotidianas, a princípio, e extremas na sequência – as interações de poder. Sem ser evidente, mas nunca deixando de ser claro, o filme encontra justamente no terror o ambiente ideal para o desenvolvimento das relações sociais e explicitações do ser humano. São ações condizentes com uma sociedade excludente, onde a reafirmação do indivíduo e o modo como ele parece aos que com ele convivem são seu objetivo primeiro. Não à toa, logo no título, volta-se a Sérgio Buarque de Hollanda e sua precisa definição do brasileiro no livro “Raízes do Brasil“.

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A “cordialidade” descrita pelo historiador está em todo o filme, principalmente no pânico que cada uma daqueles personagens sente em conviver consigo mesmo, em enxergar-se como responsável por suas (não) realizações e – claro – frustrações. É nos outros, no modo como se quer ser enxergado e como realmente o enxergam, que o indivíduo está mais preocupado. Assim constroem-se, principalmente, as personagens de Inácio, o dono do restaurante, e Sara, a garçonete. Ambos ambicionam estar em posições diversas daquelas em que se encontram. A auto-importância dele está ali no modo tirano com que trata os funcionários, a dela, na chance que enxerga de agradar seu algoz e transferir o modo como é tratada.

Se a dinâmica opressor-oprimido estabelece-se entre os protagonistas, ela se repete em outras interações de diminuição, ridicularização e exposição, com personagens satélites, e nem sempre respeitando constância e qualquer tipo de hierarquia preestabelecida. Muito pouco do que existe dentro daquele restaurante decadente supera a frustração e, de certo modo, a solidão que vai bem além de qualquer interação.

A ideia de O Animal Cordial não é apenas expor aquilo que já se conhece das relações sociais há tantos anos por aqui, mas romper a dinâmica, subverter a constituição dessas interações. Em um evento, encontra esse abalo que, curiosamente, fissura em parte aquilo que se conhece, mas não o todo. Cede-se aos instintos, minimiza-se a racionalidade, mas não se elimina a solidão e essa necessidade do ser-para-o-outro. Mesmo o romper com o humano, ao entregar-se ao que há de mais animal, não encontra lugar na existência sem existente, no sentido mais levinasiano possível.

Cria-se então a possibilidade de uma reconstrução da ordem estabelecida. O que vai ao encontro das alterações pensadas por Gabriela desde o princípio do filme, fazendo com que as representações de classes constantemente excluídas e menosprezadas em outras criações do mesmo gênero cinematográfico assumam outros lugares e se sobreponham ao opressor, criando uma nova realidade.

Contando com um trabalho inspirado de todo o elenco, destacadas as autuações de Murilo Benício como Inácio e Luciana Paes – fantástica em cena – com Sara, O Animal Cordial chega a lugares muito mais interessantes do que outros títulos de suspense gore costumam chegar. É no encontro e identificação da distinção temática, embalada em uma fórmula eficiente, usual e conhecida, que o filme se destaca e estabelece sua permanência.

Um Grande Momento:
O tête-à-tête de Inácio e Amadeus.

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Crítica originalmente publicada no site Lume Scope.

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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