Ninguém Sabe Que Estou Aqui

Há projetos que parecem ter nascido para a embocadura de um único intérprete possível. Alguém imagina o maduro Don Vito Corleone interpretado por outra pessoa que não Marlon Brando? Annie Hall faria algum sentido fora do corpo de Diane Keaton? E um Indiana Jones sem Harrison Ford vem sendo tentado, mas terá aquela magia? Iconicidades fora, Ninguém Sabe que Estou Aqui vai além de voz e marcação gestual para dar a Jorge Garcia (o Hurley de Lost) um lugar que explore uma introspecção que o próprio ator já experimentou no seu papel-chave, mas que aqui vem acompanhada de um estofo dramático e de um rigor imagético que une todas as potencialidades procuradas no projeto.

Produzido por Pablo Larraín (diretor de No e Tony Manero e produtor de Uma Mulher Fantástica), Ninguém Sabe Que Estou Aqui é a estreia na direção de Gaspar Antillo, que saiu do Festival de Tribeca premiado justamente como realizador revelação, prêmio que lhe cai bem. A melancólica história de Memo é filmada com doses de humanidade e comedida exuberância, que acabam por equilibrar as camadas de uma narrativa que parece te entregar tudo muito rápido, mas se revela cada vez mais intrincada a cada nova informação recebida – e são muitas. Larraín captura um acerto amplo ao olhar não apenas para o Chile, mas para uma história de abrangência universal sobre a perda da própria voz.

Em 20 minutos, o filme mostra que o talento de seu protagonista foi explorado e vendido pelo próprio pai, e acabou gerando uma série de traumas inimagináveis. O mais óbvio é o de Memo, que bloqueou sua personalidade e construiu uma vida interiorizada; uma explosão de cor, luz e brilho que lhe foi roubada mas se esconde dentro de si. Como se conclamasse uma dívida com a sociedade que o usurpou, o protagonista só sai de sua casa-exílio numa ilha afastada para invadir casas e tomar pra si alguma pequeneza que lhe faça sentido. Aos poucos, sua história ficará grande pro seu trabalho junto ao carinhoso tio como criador de ovelhas. 

Na ausência do espetáculo que deveria ter composto sua vida, Memo criou um universo particular onde veste em si tudo que faltou em sua existência: o brilho que faz parte integrante de seu DNA (e que em determinado momento da produção é expelido com veemência) é reproduzido artificialmente em sutilezas pontuais, em fugas precisas para se conectar com a vida que o destino lhe deve, e que ele cobra de maneira lúdica. Quando a realidade exterior rasga seu microcosmos, Antillo para de explorar os ombros de seu protagonista pra encher a tela com sua frontalidade arrebatadora, tirando o personagem da sombra que criou pra si, dando o holofote que lhe é de direito. 

O trabalho de direção não aparenta nenhuma inexperiência em cena, deixando claro que sua construção dessa leitura de personagem é muito física e expositiva, mas vai além do corpo de Garcia e invade os cenários pelo qual ele circula pra ler suas potencialidades em cada ação que cometer. A coragem do ator encontra respaldo na exigência do autor, ambos sem medo de entregar nuances cada vez mais significativas, que vão desde a leitura em imagens desse corpo até o olhar surpreendente ante as revelações do filme, que permitem a Garcia expandir seu trabalho para além do peso que sua massa representa – são olhos, mãos e pernas a serviço do cinema, que Antillo lê tão bem. 

Sem se conformar em garantir uma prisão de aceitação e depressão para seu personagem, o filme erra ao não explorar o suficiente para dar credibilidade ao seu final, que, no entanto, me parece muito mais próprio da evolução do filme; observa uma espécie de (re)nascimento, e não podia chafurdar no lugar-comum da auto piedade ou da tristeza recorrente. Cheio de vida, Ninguém Sabe que Estou Aqui tem na fotografia de Sergio Armstrong (o gênio por trás de No, Neruda, Ema e a maioria dos longas de Larraín) um ponto de conexão vital à trama, trazendo luzes quentes a vida interior de Memo e cinza às costas do mesmo. 

Sem ampliar as questões a respeito da auto-estima reconstruída do personagem central que poderiam render tanto, o roteiro de Antillo, Enrique Videla e Josefina Fernandez centra muito mais em seus rompantes do que na construção deles. Isso não diminui o brilho de uma estreia tão sensível quanto a dessa história do patinho feio ao qual foi negada a possibilidade da transformação em cisne, e sai de cena deslizando com o sentimento de dever cumprindo. 

Um Grande Momento:

Toda a sequência do reencontro entre Memo e Angelo.

Netflix

Ninguém Sabe Que Estou aqui

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