Último dia de um festival, premiação, última festa. No dia seguinte ainda, “de quebra”, o dia dos Berlinenses invadirem o cinema, o Berlinale Kinotag. Dá pra esticar mais um pouco. Nota-se uma mudança repentina no centro da cidade. Fala-se menos língua estrangeira, mas os cinéfilos teimosos ainda aproveitam o domingo para ver esse ou aquele filme que não coube na agenda apertada dos 10 dias intensos do festival.
Esse aspecto de capital do mundo vai mudando durante as horas de domingo e Berlim retoma o seu habitual aspecto de um vilarejo. Andando entre um cinema e outro me vem na mente a imagem do crocodilo melancólico de TABU, filme de Miguel Gomes, aliás, o melhor filme da competição, que vem mudando de caráter a cada ano e desde há muito não segue uma linha lógica, é mais uma roleta russa, um produto de felizes casualidades.
Todo cinéfilo que se preza sabe do black box que se encara quando, no dia seguinte, não há mais filmes para serem vistos as 9 horas da matina, ainda mais se essa matina for numa segunda-feira. Faço uso do pragmatismo prussiano de um ditado originariamente de contexto futebolístico, mas o que dá para o futebol, dá para o cinema também: “Depois da Berlinale, é antes da Berlinale”. Não há porque desesperar.
Os highlights do festival não foram nem tanto as estrelas ao longo do tapete vermelho. Uma exceção: Meryl Streep, que preenche todos os quesitos que uma estrela deve ter. Uma áurea de quem ainda quer muito aprender e um sorriso de quem se surpreende todas as vezes que ganha um prêmio de peso.
Para os cinéfilos, os highlights desse ano encontravam-se nas mostras paralelas, principalmente a Panorama, que devido ao seu diretor Wieland Speck e suas frequentes viagens ao Brasil, se tornou ao longo dos anos o terreiro do cinema brasileiro no festival.
Os meus preferidos desse ano:
Competição
TABU, de Miguel Gomes
Com uma cinematografia singela e ao mesmo tempo riquíssima, o filme arranca o expectador da zona de conforto, o surpreende e delicia com uma colagem inusitada igualmente para os olhos e o intelecto.
Mostra Panorama:
Marina Abramovi, The Artist Is Present, de Matthew Akers
Quando menina, Marina diz ter sido totalmente ignorada pela mãe. Essa vivência a teria influenciado tanto que, em mais de 40 anos de seu trabalho, uma das principais pilastras é o contato com seu público.
No documentário fica bem claro que o caminho da arte sem limites é mesmo seguido sozinho. A partir de um ponto, não se pode dividir com ninguém, o artista tem que seguir sua missão, o seu caminho. Só.
Uma das cenas mais intensas do documentário é a andada de Marina e seu ex pela muralha da china. Ele, também atuante no filme, confessa que a partir dali o relacionamento dos dois se desmembrou, porque ele não tinha a motivação para galgar esse lugar lá em cima, perseguir o acima do limite.
Nascida na sérvia e há muitos anos residente em Nova Iorque, Marina é uma das mais famosas performistas da nossa atualidade. O filme trata do seu projeto mais significativo, uma retrospectiva em 2010. Em uma exposição no MoMa, ela tem um encontro pessoal com os visitantes, faz uma viagem radical misturando arte e vida real. Sentada numa cadeira e com postura quase imóvel, num imenso desafio também físico, ela senta em frente aos visitantes, emociona pessoas de todas as idades e proveniências e, no final, senta na cadeira um visitante inesperado, ajudando a aumentar o suspense do filme.
O documentário é fruto de um trabalho de convivência de três anos, como disse o diretor Matthew Akers na cerimônia de entrega do “Prêmio de Público Panorama” no último domingo.
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Marina nos mostra de forma exemplar o que falta na nossa civilização pós-moderna e altamente globalizada: o olhar para o outro. Parece simples. Sofremos com ela no seu desprendimento perante pessoas totalmente desconhecidas, ao mesmo tempo que entramos num modus de auto-reflexão sobre as nossas distâncias, os nossos limites.
Rei dos Comics (König des Comics), de Rosa von Praunheim
Nesse filme sobre o cartunista alemão Ralf König, o diretor gay Rosa von Praunheim consegue de fato ficar quase todo o tempo atrás da câmera. Num documentário muito cheio de irreverência silenciosa e humor sobre como é ser homosexual assumido e, ao mesmo tempo, de muito sucesso, o filme nos faz companheiros de König que, por algum acaso, conta da história do grande amor que viveu com um carioca.
Autor de vários livros de cartoons, em sua maioria focados na temática do homossexualismo ou no relacionamento entre homens e mulheres, Ralf é conhecido em toda a Alemanha. Seus livros estão em todas as livrarias, motivo de interesse dos mais diferentes grupos. Um dos seus livros já foi adaptado para um filme que, no início dos anos 90, foi campeão de bilheteria: “Der bewegte Mann” (O homem cheio de aventuras).
Rosa von Prauenheim fez um perfil íntimo e cheio de espontaneidade de Ralf König com direito à uma revelacão muito singela no final.
Olhe pra mim de novo, de Kiko Goifman e Clauida Priscilla.
Como já mencionado no artigo Olhe pra mim de novo em Berlim, o filme ter sido exibido em Berlim o possibilitará um início de carreira mais fácil e mais acessível, em termos de sala de cinema e quantidade de público no Brasil. Tirando as razões pragmáticas, o filme é um lindo retrato de um cara “na contramão” que, com muita inteligencia emocional, soube fazer das desavenças uma mão dupla.
A história do protagonista espelha um Brasil além das esquinas de Copacabana, além das transações em plena praia de Boa Viagem no Recife e atrás da Central do Brasil. “Olhe pra mim de novo” espelha um Brasil escondido que algumas pessoas teimam não querer conhecer.
A Sós – Gays na ex-RDA (Unter Männern – Schwule in der DDR), de Ringo Rösener e Markus Stein
O documentário dos diretores alemães Markus Stein e Ringo Rösener mostra o perfil de quatro homossexuais, que contam seus percalços vivendo sob a opressão da cortina de ferro e o chamado real socialismo.
Quem pensa que o perfil é recheado de reclamações e amarguras, se engana. Claro que cada história tem seus momentos de sofrimento e amargura, mas também de muita superação. Como um deles, que vive num cafofo no norte da Alemanha durante muitos anos uma vida de mentira, ou outros que viam na promiscuidade a única forma de viver suas experiências sexuais.
A câmera não se deixa seduzir por uma postura voyeuirista, ao contrário, enriquece as nossas próprias experiências frente a adversidades independente de nós. Um filme para rir, refletir e se inteirar de histórias inusitadas e cheias de determinação por quem vivia atrás da cortina de ferro.
Mostra Novo cinema alemão (Perspective Deutsches Kino)
This ain’t California, de Marten Persiel
Documentário sobre a cena de skatistas de Berlim Oriental no início dos anos 80. Vale lembrar que, apesar do muro ter sido tombado somente no final dos anos 80, no início da década Berlim Oriental já tinha como realidade, vários movimentos e correntes arraigadas na sociedade com o objetivo de alcançar maior liberdade. Os jovens da época encontraram no skate a sua forma de transgressão, de liberdade de expressão, de fugir da massificação obrigatória de grupo para transcender para a individualidade.
Skatistas juntavam-se no centro de Alexanderplatz, já na época o cartão de visitas da cidade, para mostrar suas qualidades. Atraíram tantas pessoas que isso chamou a atenção do governo comunista, que logo tentou arrumar um plano para domar esses garotos. Há cenas hilárias das agências de notícias oficiais chamando o skate de “um produto diabólico do inimigo”. Como essa liturgia não foi seguida e o skate chamavam cada vez mais a atenção, o governo da ex-RDA decidiu fabricá-los no próprio país sob o nome de “Germina”, dando à essa atividade uma roupagem de esporte competitivo, para assim recrutar os jovens “levando-os para o caminho certo” para arrancar medalhas de outros países nas competições internacionais.
Com o campeonato em Praga, a comunidade de skaters, sob protesto do governos da RDA, se juntou à equipe do ocidente no mesmo hotel, formando uma comunidade e depois até mesmo uma rede de contatos entre os países do ocidente e do oriente.
O diretor Martin Persiel era um dos skatistas e, por sorte nossa, filmou tudo em Super 8, construindo assim um arquivo ímpar sobre a cultura urbana de Berlim Oriental do início dos anos 80. Seus sonhos, seus sucessos, esperanças, os fracassos e os caminhos diferentes tomados na vida adulta, depois da queda do muro de Berlim, quando cada um foi pro seu lado. O filme é dedicado à Denis “Panik” Panicek (1970 -2011) que, por razões que seus antigos amigos até hoje desconhecem, acabou se tornando soldado do exército alemao no Afeganistão e, alvo de um ataque, morreu.
O filme ganhou o prêmio “Dialog en Perspective” concedido por um júri de cineastas entre 20 e 29 anos vindos especialmente da Alemanha e França.
Mostra Forum:
Negociando o Amor (Beziehungsweisen), de Calle Overweg
Filme de ficção-documentário onde três casais se encontram em momentos de crise e procuram a ajuda de terapeutas de casais, estes exercem de fato essa profissão na vida real.
O diretor mencionou em entrevista que não foi nada difícil convencê-los a participar do filme. Sua única preocupação era conciliar as gravações com a agenda dos mesmos. Ele diz que teve a idéia do filme logo depois de sua própria separação, mas que quando sentou para escrever o roteiro notou que tudo ficara mais universal e com menor percentual biográfico do que antes, o que o teria deixado muito aliviado. Ele disse: “Eu não queria que a minha ex-se visse desnuda ali no meu filme, nem queria que meus pais sentissem vergonha quando o assistissem…”
Principalmente quem já teve uma experiência frente a um terapeuta de casal vai adorar esse filme rodado com cenário totalmente minimalista, atores e atrizes excelentes e um diretor que, de vez em quando, interrompe as sessões terapêuticas e interage no set causando estranhamento e surpresa ao mesmo tempo.
Negociando o amor é um filme denso, profundo e intenso sobre as dúvidas torturantes de qual trilha seguir quando o caminho é a dois.
Quem gosta de ouvir histórias, espiar as histórias dos outros e não abdica do escurinho do cinema para transcender a realidade e a rotina lá fora tem no festival de cinema de Berlim um ecletismo tão imenso que, às vezes, só mesmo se desdobrando para poder estar nos cinemas, nos filmes que se quer.
Nesse caso tem vantagem ser jornalista. A possibilidade das cabines antes do festival iniciar oficialmente. Uma resenha como essa, por exemplo, não seria possível sem as cabines que acontecem bem antes do mundo de cinéfilos adentrar a capital alemã.