O Limite da Traição (A Fall From Grace) é um filme de streaming disponível na Netflix, dirigido e roteirizado por Tyler Perry, que conta a história de Grace Waters (Crystal Fox), uma mulher mais velha que exerce um cargo de confiança na empresa em que trabalha há anos, desempenha um trabalho social de apoio aos sem-teto e frequentadora assídua da Igreja de sua cidade, a qual é acusada do homicídio de seu namorado, Shannon (Mehcad Brooks), um rapaz mais novo, bem apessoado, com quem Grace teria saído por um tempo antes de decidirem morar juntos.
No desenrolar da trama de O Limite da Traição, somos apresentados ao casal Jasmine Bryant (Bresha Webb) e Jordan (Matthew Law). Jasmine é uma defensora pública que, ao longo de sua carreira, apenas faz acordos com a promotoria, visando a celeridade e o arquivamento dos casos em Virgínia, enquanto seu marido, Jordan, é um policial que se sente desolado após uma senhora que ele teria tentado salvar ter pulado de um telhado e tirado a própria vida.
Jasmine é designada por seu chefe, Rory (Tyler Perry) para atuar no caso de Grace Waters, que se declara, desde sempre, culpada pelo homicídio de seu namorado, e suplica para que em seu acordo esteja expresso que ela seja presa na penitenciária perto de seu filho, Malcolm (Walter Fauntleroy).
Acostumada com fazer acordos, a defensora sente-se inicialmente acuada diante da visibilidade midiática que o caso de Grace tem, mas depois aceita conversar com a ré, para explicar-lhe detalhes do acordo, contudo, após um primeiro contato com a sua mais nova cliente, Jasmine se convence de que há algo errado no caso, tanto porque Grace não corresponde ao tipo de pessoa que cometeria um homicídio doloso, quanto porque o corpo de Shannon jamais havia sido encontrado.
Diante de inúmeras falhas técnicas, cenas frustrantes e um plot twist extremamente desnecessário e previsível, O Limite da Traição traz à tona uma importante questão acerca do julgamento de Grace, no que concerne ao famoso trial by media (julgamento pela mídia), uma vez que o filme mostra a imprensa divulgando o caso de Grace de forma extremamente parcial, contando como aquela senhora havia sido capaz de assassinar seu próprio namorado.
O julgamento pela mídia é o termo que se utiliza para descrever o impacto de notícias televisionadas ou difundidas em rádios e jornais, que são capazes, por si só, de transmutar a reputação de uma pessoa, ao criar uma falsa percepção de culpa ou inocência antes mesmo de um julgamento legal, tal qual acontece em O Limite da Traição, razão pela qual, diante das matérias amplamente divulgadas, nem sequer a defensora pública do filme quis, à princípio, aceitar o caso de Grace.
O que se verifica, na vida real é que inúmeros dados de casos concretos são vazados à imprensa que, por vezes, com pouquíssimas informações, repassa os detalhes do crime de forma equivocada, construindo uma narrativa errônea sobre o mesmo, indicando um suspeito ou uma suspeita e, consequentemente, causando uma revolta da comunidade em relação àquele indivíduo apontado pela mídia como autor do crime.
A prática da imprensa neste sentido não é vedada e, em verdade, é garantida pelo próprio texto constitucional, que assegura à imprensa o direito de expressar-se, emitindo opiniões próprias (desde que devidamente indicado que se trata de opiniões pessoais), bem como assegura à sociedade o direito à informação, de modo que, via de regra, inexiste um sigilo das informações pessoais do réu, a fim de protegê-lo (raros são os casos em que as informações do acusado deixam de ser divulgadas).
Neste cenário de garantia do exercício da livre imprensa e do direito à informação, não é raro depararmo-nos com julgamentos antecipados, fundados em “achismos” da mídia – que, diante dos dados que lhes foram repassados, montam uma narrativa e a repassam para o público – e na moral de uma sociedade que adora julgar, ainda que sem provas.
O problema dos julgamentos antecipados vai além do simples equívoco de uma sociedade inteira falar mal ou apontar o dedo na cara de uma pessoa, porquanto a vida da pessoa acusada pode ser completamente destruída em razão de uma conclusão equivocada, derivada de uma notícia mal fundamentada e amplamente difundida, já que a pessoa, uma vez tendo seu nome e rosto exposto pela imprensa, nunca mais será esquecida pelo imaginário popular e, consequentemente, enfrentará inúmeras dificuldades em sua vida pessoal (amorosa, profissional, familiar, etc.), ainda que haja posterior retratação por parte da imprensa.
A gravíssima conduta de acusar erroneamente, praticada algumas vezes pela imprensa, pode, ainda, ser fator crucial na condenação equivocada de um indivíduo, isto porque, em inúmeros casos, as informações sobre os suspeitos, em crimes contra a vida, são divulgadas antes mesmo da formação de um corpo de jurados e, consequentemente, o júri que analisa o caso já chega ao tribunal enviesado pelas informações repassadas pela mídia e sequer se atenta à sua versão dos fatos.
Especificamente no Brasil, o Tribunal do Júri é responsável pelo julgamento dos crimes dolosos contra a vida (homicídios com a intenção de matar) e este julgamento é consumado pelo chamado Conselho de Sentença, um conjunto de 7 jurados, os quais são escolhidos dentre os 25 que são sorteados da lista de jurados alistados de determinada Comarca. Todos esses jurados são leigos e não têm a obrigação de fundamentar seus votos, portanto, podem tanto condenar alguém, simplesmente porque gostaram mais do promotor, quanto podem absolver alguém por “clemência” (sem qualquer razão jurídica).
É evidente, portanto, que o julgamento pela mídia, antecipado, sem acesso a todas as provas dos autos, nem sequer às informações apresentadas pela defesa dos réus é extremamente perigoso, no que diz respeito aos homicídios dolosos, porquanto podem ser informações suficientes para enviesar o julgamento do júri, a ponto de assegurar que as informações apresentadas pela defesa sejam completamente desqualificadas e desprezadas e a condenação seja efetivada, ainda que o conjunto probatório da acusação seja extremamente frágil.
O mesmo também pode ocorrer em julgamentos de outros crimes, efetuado por juízes togados, mas, diante da norma constitucional que obriga os juízes togados a motivarem e fundamentarem suas decisões, fica mais difícil que eles simplesmente se deixem levar pelo julgamento pela mídia e ignorem as provas trazidas tanto pela defesa quanto pela acusação.
De toda sorte, é evidente que o trabalho parcial da mídia sensacionalista, que busca apontar os autores de crimes graves, é extremamente irresponsável, na medida em que constrói uma narrativa falsa e gera consequências graves de um pré-julgamento social e da exclusão do indivíduo acusado, ainda que tal acusação seja falsa ou equivocada.
Para melhor explicar a consequência do julgamento pela mídia, no Tribunal do Júri, vale recordar a lição de Guilherme de Souza Nucci:
“…é maléfica a atuação da imprensa na divulgação de casos sub judice, especialmente na esfera criminal e, pior ainda, quando relacionado ao Tribunal do Júri. Afinal, quando o jurado dirige-se ao fórum, convocado para participar do julgamento de alguém tomando ciência de se tratar de “Fulano de Tal”, conhecido artista que matou a esposa e que já foi “condenado” pela imprensa e, consequentemente, pela “opinião pública”, qual isenção terá para apreciar as provas e dar o seu voto com liberdade e fidelidade às provas?”*
Trazendo a casos práticos, que demonstram as graves consequências do julgamento pela mídia, pode-se mencionar o caso Escola de Educação Infantil Base, em que a mídia sensacionalista divulgou a versão de duas mães, que acusaram os donos e o motorista da Escola (Icushiro Shimada, Maria Aparecida Shimada, Mauricio Alvarenga e Paula Milhim Alvarenga) de terem assediado sexualmente seus filhos.
A versão acusatória foi amplamente divulgada pela imprensa, de forma extremamente parcial, antes mesmo de serem ouvidos os acusados em delegacia e as consequências do julgamento pela mídia foi a pior possível: a sociedade condenou, afastou, agrediu e humilhou todos os envolvidos no caso.
Posteriormente, restou comprovada a inocência de todos os acusados, mas os danos materiais e morais sofridos por eles, causados pela incorreta divulgação de informações falsas até hoje permanecem e a luta pela indenização devida pelas emissoras envolvidas se perpetua.
O fenômeno do julgamento pela mídia não alcança apenas o Brasil – o que fica evidente quando se vê a ampla divulgação do caso de Grace, retratada em O Limite da Traição, tampouco se limita a Brasil e Estados Unidos, mas é reconhecido mundialmente e sempre traz à tona o debate sobre os limites da liberdade de imprensa e da liberdade de expressão, e nos alerta à importância de não condenarmos alguém com simples informações trazidas ao público pela imprensa, afinal, a todos deve ser assegurado o devido processo legal, com direito à ampla defesa e contraditório.
(A Fall from Grace, EUA, 2020, 115 min.)
Suspense | Direção: Tyler Perry | Roteiro: Tyler Perry
Elenco: Crystal Fox, Phylicia Rashad, Bresha Webb, Mehcad Brooks, Cicely Tyson, Tyler Perry, Matthew Law, Donovan Christie Jr., Walter Fauntleroy, Angela Marie Rigsby
*NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do Júri. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p.131.
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