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O Quarto ao Lado

Sutil ousadia

(The Room Next Door , EUA, ESP, 2024)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Pedro Almodóvar
  • Roteiro: Pedro Almodóvar
  • Elenco: Tilda Swinton, Juliane Moore, John Turturro, Alessandro Nivola, Raúl Arévalo, Juan Diego Botto
  • Duração: 105 minutos

O “longa-metragem falado em inglês dirigido por Pedro Almodóvar” existe, enquanto promessa e desejo, desde pelo menos os anos 1990, com as várias inquietações de um dos maiores cineastas da História do cinema espanhol podendo (ou não) ganhar novas camadas ao abrigar uma atmosfera, em tese, tão disparatada de sua sensibilidade. A Flor do meu Segredo foi originalmente pensado para território anglófono, e mais recentemente Julieta, uma adaptação de escritos de Alice Munro, foram quase tentativas. Eis que surge O Quarto ao Lado para aplacar essa ânsia, que era do diretor e também de curiosidade do espectador, compreender onde poderiam se arquitetar tais elementos tão caros ao cineasta. A boa resposta é que podemos relaxar porque sua boa forma não é interrompida pela tradução, e faço tal afirmação de maneira muito mais ampla do que uma referência à linguagem, de maneira mais direta. 

Almodóvar vai além da alcunha de “cineasta espanhol”; ele é quase uma tradução pictórica do que é vendido da cultura de seu país. Ou talvez tenha sido ele mesmo um dos responsáveis por essa manufatura de um recorte de imagens, que mostram Barcelona e Madri como mecas do kitsch, de uma extravagância selvagem, de um abraço no melodrama que não se encerra na estética. Como esse homem com um arsenal de idiossincrasias locais estaria assentado quando tais elementos fossem realçados (ou mitigados) pelas linhas que se julgam naturalistas da América do Norte? A resposta é um filme que consegue a rara proeza de soar trivial e certeiro a um só tempo, retorcendo o que conhecemos do autor e do que conhecemos de escola estadunidense de audiovisual, principalmente o tão reverenciado drama. 

No caso do diretor responsável por, entre algumas obras-primas Tudo Sobre Minha Mãe, o melodrama, que aqui se coloca de maneira mais sutil do que geralmente o faz, mas que ainda encontra espaço para fincar raízes. O Quarto ao Lado, baseado em romance de Sigrid Nunez, explora as capacidades do autor de se transmutar sem perder suas características, suas principais metodologias, e sua capacidade de entrecruzar a dor mais profunda ao mais desconcertante humor. Sim, estamos assistindo a um filme de Pedro Almodóvar, mas esse cineasta hoje tem uma abordagem diferente ao que nos acostumamos ver. Sem amansar, sua arma letal continua incisiva, mas já há algum tempo que ele se mostra menos histriônico, de onde sua força não escapou. 

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Ao contrário do que já fez anteriormente em sua obra, Almodóvar não transforma O Quarto ao Lado em um divã conjunto, tratando suas personagens como sutis desdobramentos umas das outras. Martha e Ingrid são mulheres distintas, com voz e camadas apartadas. Seu desenvolvimento pode até partir da ideia de que cabem nelas posições que criam um painel, mas elas não são complementares; tratam-se de mulheres recheadas de matizes diferentes. Acompanhar o reencontro dessas duas amigas afastadas há muito, e perceber a conexão tímida que converge em uma cumplicidade inabalável, é um trunfo da direção e do roteiro no que pode ter de mais trabalhado. 

Acima de tudo, O Quarto ao Lado mostra a confiança de seu autor para tratar de um tema que não está diariamente nas rodas de conversa, e que ainda gera muita polêmica. A eutanásia (que estará em discussão nesse momento, com a decisão do poeta Antonio Cícero protagonizando o debate), o direito a ela, e a plenitude em tomar tal decisão é o mote que o filme desenvolve, sem cair no miserabilismo e olhando para os eventos com delicadeza. Afiado em seus diálogos, o roteiro aqui é a porta de entrada para desconstruir o que poderia ser uma preocupação, que são todos esses excessos desembarcando em uma produção estadunidense, muito mais conservadora que a europeia no assunto. No entanto, o resultado é mais uma prova de um momento especial para o cineasta, onde ele vê o mundo com os olhos de uma melancolia e de um saudosismo comoventes. 

Geralmente um campo ilimitado para performances inquestionáveis, o ponto alto de O Quarto ao Lado não é suas intérpretes. Embora Juliane Moore e Tilda Swinton estejam em plena forma, o principal nome da produção é o de Pedro Almodóvar mesmo, que ultrapassa o lugar que poderia ser arriscado de maneira intacta. Não foi um malabarismo pouco complexo o empreendido aqui, mas o cineasta eleva seu olhar justamente por conta dos riscos encarados. Ao final da jornada, temos uma produção envolvente e sóbria a respeito de uma discussão espinhosa, que o cineasta envolve com humanidade e bom humor, com as famosas “cores de Almodóvar” perceptíveis. Ou seja, ao invés de perder alguma forma de entrada para seu universo, o homem por trás de Fale com Ela ampliou seus horizontes e sai dessa empreitada renovado. 

Um grande momento
A fascinante chegada de Michelle 

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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