Crítica | Streaming e VoD

Toque Familiar

Cenas de adeus

(Familiar Touch , EUA, 2024)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Sarah Friedland
  • Roteiro: Sarah Friedland
  • Elenco: Kathleen Chalfant, H. Jon Benjamin, Carolyn Michelle, Andy McQueen, Joahn Webb
  • Duração: 88 minutos

É raro uma direção estreante conseguir espaço em um grande festival europeu. É raro uma mulher tão jovem – no caso, 32 anos – conseguir uma estreia celebrada. É raro um filme sair de um festival com três prêmios. Pois Sarah Friedland conseguiu os três pontos acima com Toque Familiar, assim como o nosso Kleber Mendonça Filho e seu O Agente Secreto conseguiu três deferências no Festival de Cannes deste ano. Dos três strikes conseguidos pela autora, a semelhança que ela divide com Filho é a mais improvável; ao assisti-lo, conseguimos entender como seu filme saiu do Festival de Veneza com os troféus de melhor direção, melhor filme de estréia e melhor atriz, para sua protagonista Kathleen Chalfant, de 80 anos. São muitas improbabilidades unidas por um belo momento de cinema, mais ainda, uma reflexão sobre o tempo e nosso lugar nessa régua. 

Apesar de não se vestir como um enigma, Toque Familiar propõe em seu primeiro acorde um que rapidamente envolve o espectador em uma espiral de sensações, a maior parte delas ligada ao constrangimento e a melancolia. Ruth está em sua casa e recebe um homem para almoçar com ela. No breve diálogo, percebemos o flerte da dona da casa para com seu interlocutor, que freia as investidas da mulher. Com o desenrolar dos eventos, ele se oferece para levá-la para onde ela precisa ir, com uma mala para carregar. Eles então chegam a um lugar e são atendidos por uma enfermeira e a estranheza desse prólogo se revela: Ruth está se internando em uma clínica para idosos, Steve é seu filho e ela apresenta sinais avançados de demência senil. 

É uma sacada dolorosa a que Friedland envolve seu público, colocando-o a par das situações ao passo de experimentá-las, e sentir-se brevemente alheio ao que está sendo apresentado. Ainda que o espectador mais experimentado se aproxime das respostas antes que os primeiros 10 minutos se encerrem, a forma arguta como o roteiro apresenta sua protagonista é sedutora e muito precisa. Não precisamos ir além desse momento inicial para estarmos na pele de uma mulher independente e cheia de predicados que está se perdendo em suas próprias certezas, e passa a não ter mais controle a respeito de seus parâmetros. A partir daí, somos levados a conhecer essa personalidade tão peculiar escondida na protagonista de Toque Familiar

Não digo isso porque Ruth é exótica, ou carrega uma personalidade extravagante. Pelo contrário, a personagem central do filme é uma mulher sofisticada, culta, de fraseado eloquente, ao mesmo tempo em que sua verve é afiada, sua educação nunca é diminuída, e sua doçura uma marca registrada. Rapidamente, conquista muito mais do que a simpatia da clínica, mas admiração e respeito, e isso não se transforma em carinho à toa, ou com custo. Tais predicados e sua relação com os funcionários de todas as ordens ali são construídas de uma maneira à beira do documental, pela forma como aquela rotina é desenvolvida com sutileza e uma certa harmonia natural. Por essa descrição é que torna-se tão duro testemunhar a gradativa partida de Ruth, e sua desconexão gradual inclusive à quem lhe deseja tão bem. 

Sem agudos narrativos, Toque Familiar tampouco é uma produção que avança sem que um certo peso seja arremessado na tela. Isso não é impresso com dureza ou dramaticidade explícita, mas sim é oriunda de um lugar da familiaridade com tais passagens e os habitantes desse recorte. A fácil identificação é provocada também pela ideia muito verdadeira de repassar o desconforto da abertura para quem circula na nova realidade de Ruth. Sem demorar, já estamos enredados na contínua e nova rotina da personagem principal e as atribuições que ela incumbe para si, como nas várias cenas onde ela (re)cria uma realidade particular quase como um teatro, mas que funciona na maneira como sua protagonista se comunica com esse jogo, onde a interpretação de todos é necessária para criar um novo mundo alternativo. 

Ainda que seja uma produção com um protagonismo quase absoluto, Toque Familiar prima pelo elenco exemplar, apesar de pouco conhecido. Carolyn Michelle e Andy McQueen são os principais personagens entre os funcionários da casa de repouso, e têm desempenhos reativos excepcionais, proporcionando uma troca de qualidade. H. Jon Benjamin é o filho e tem momentos muito tocantes dentro do filme, quase tudo que o envolve é carregado de uma emoção que ator sabe dosar. Kathleen Chalfant, no entanto, é a capitã do time que coloca nosso envolvimento com o filme à prova, porque é a partir dela, de sua performance comprometida e nuançada, que Toque Familiar mostra a capacidade de uma produção ficcional nos envolver com a capacidade e a textura de um material documental, e isso é o maior elogio que o filme poderia receber. 

Um grande momento
Ruth chef 

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
Assinar
Notificar
guest

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

0 Comentários
Mais novo
Mais antigo Mais votados
Inline Feedbacks
Ver comentário
Botão Voltar ao topo