Crítica | Cinema

Uýra – A Retomada da Floresta

Nasce uma voz

(Uyrá - A Retomada da Floresta , BRA, 2023)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Juliana Curi
  • Roteiro: Juliana Curi, Martina Sönksen
  • Elenco: Uýra Sodoma
  • Duração: 65 minutos

Uma entrega sensorial à sua historicidade, que lhe habita corpo e alma. Poderíamos desenhar dessa forma o lugar em que o personagem-título de Uýra – A Retomada da Floresta empreende ao longo da duração do filme. Mas a verdade é que Uýra não está performando apenas para a câmera, e sim revelando ao espectador a narrativa de sua própria vida, dia após dia. A produção aproveita-se da performatividade que a personagem já interpõem na sua rotina, e assim a espécie de instalação proposta pelo roteiro cabe sem precisar justificar seu gatilho. Aos poucos, filme e identidade artística se transformam em algo indissociável em sua unicidade, e o espectador segue aquela persona onde ela for. 

Uýra é uma personagem das mais interessantes, perfeita para compor um quadro ‘sui generis’ do país. Se todas as histórias parecem já ter sido contadas, a existência dessa mulher trans indígena e preta é, por si só, um ato revolucionário. Em um país onde mulheres são assassinadas, LGBTQIAP+ são assassinados, indígenas são assassinados, um mesmo ser que esteja inserido nesse combo de risco máximo é um acontecimento. Mas também seu protagonista não se qualifica como uma “coisa”, ou um objeto de estudo de dados; Uýra – A Retomada da Floresta o enfoca em sua arte, em sua luta, mas também em sua humanidade. É a partir de todos esses locais que acessamos seu coração pulsante e ouvimos seu grito suave. 

Uýra - A Retomada da Floresta
João Algarve

Não interessa também a Uýra um espaço solitário. Ela aglutina dentro e fora do plano, com seu chamado coletivo à luta, mas permitindo que outras manas como ela estejam em prol de um projeto de mudança de pensamento. Para isso, um bloco de cenas como a do dis-curso é fundamental, que desemboca na criação de uma performatividade em conluio com a natureza, e na “invasão” dessas personas do espaço urbano. A partir do encontro dessas histórias e vivências, observamos a pluralidade de um grupo mesmo em lugar tão inusitado quanto a Amazônia e seus arredores. Sem tirar o protagonismo de sua figura, Uýra – A Retomada da Floresta reencena esse espaço de luta para que caiba também esse complemento de potências. 

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Em Antes o Tempo não Acabava, Fábio Baldo e Sérgio Andrade já tinham visualizado uma performance disruptiva dentro do espaço dedicado ao indígena no cinema nacional. Parece uma porta de entrada para o que aqui é exibido, de maneira ainda mais radical em seu entendimento dos desdobramentos de gênero. É preciso que a complexidade de figuras típicas dos povos originários não se resumam a uma representação apenas, e mesmo dentro do plano aqui vemos um manancial de olhares diversos para o que são suas sexualidades, e suas demonstrações de fluidez. O espectador é tragado para sua leitura de um país que é só seu, diverso e inclusivo; seu colorido impressiona e sua verdade é tão tátil que consegue alcançar qualquer um que esteja disposto a ouvi-la.

Uýra - A Retomada da Floresta
João Algarve

Juliana Curi monta sua estratégia na influência mínima sobre aqueles personagens e falas. A atmosfera que seu filme persegue é exercida pelo seu corpo, pela sua verbalização, pela construção visagista que exerce em sua arte. É um trabalho discreto de intenções, que se torna positivamente refém de uma artista em constante movimento e formação. A partir dessas ideias de sua formação como ser pensante e atuante em sociedade, Uýra – A Retomada da Floresta cerca suas imagens do que sua protagonista representa, não apenas para o seu redor direto. Ecoa do que ela promove e alimenta para longe dela através dessa obra de alcance suave, porque assim o é Uýra. Nada disso, porém, impede o filme de conseguir compreender tanto de seus processos, de cura e libertação de fantasmas. 

De conteúdo mais sucinto do que talvez poderia oferecer, Uýra – A Retomada da Floresta vai exatamente no ponto crucial das questões, e apesar da contemplação que a arte de sua personagem promove, o filme arca com pouco dessa ideia. De maneira irônica, talvez seu desfecho (uma sequência mais longa que o habitual na produção) enfim encontre esse lugar paisagístico em relação à ação, que é sempre bastante pautada até ali. Todo o resto é de muita presença física, de falas de teor político evidente e muito assertivas, mas que definem muito bem uma figura maior do que seu próprio ponto em questão. Não parece suficiente para radiografar o tanto de informação que vaza dessa existência, que de maneira bem rápida compreende essa mulher, seu entorno e suas demandas, e então se vai. 

Um grande momento: O cemitério indígena que desapareceu

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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