Crítica | Festival

Aos Olhos de Ernesto

Sobre liberdades, carências e solidão - e o futuro

(Aos Olhos de Ernesto, BRA, 2019)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Ana Luiza Azevedo
  • Roteiro: Ana Luiza Azevedo, Jorge Furtado
  • Elenco: Jorge Bolani, Jorge D'Elía, Gabriela Poester, Júlio Andrade, Gloria Demassi, Áurea Baptista, Kaya Rodrigues
  • Duração: 123 minutos

Antes de mais nada, é injusto termos que esperar 10 anos por um novo filme solo de ficção de Ana Luiza Azevedo, cineasta gaúcha que dirigiu o delicadíssimo Antes que o Mundo Acabe há tanto tempo e só agora o segue com esse Aos Olhos de Ernesto, outra suave história de encontros em lado oposto da régua – enquanto em seu longa anterior, Ana falava sobre as decisões primeiras da adolescência, nessa nova produção o enfoque recai sobre a terceira idade e as ausências provenientes da mesma. Em comum, a cineasta trata esses dois momentos sem didatismo mas também sem vitimismo, afastando possíveis tentativas de diminuir a condição humana em idades que geralmente são desqualificadas.

Co-escrito com Jorge Furtado (com quem ela colaborou em várias produções, como no recente Rasga Coração), o filme não compreende um lugar para longe desse olhar especificado para a velhice, sem abrir espaço para o externo individual, porque todas as experiências, inclusive as que não diz respeito ao protagonista, são vividas com a participação e anuência do mesmo. Logo, mesmo as situações que não o incluem como agente ativo, ele participa como espectador, sempre conduzindo a narrativa para reverberar nesse homem anacrônico, e que tira desse aparente atraso as ferramentas possíveis para promover sua própria reflexão.

Aos Olhos de Ernesto

Grande parte do projeto empático da produção é atribuído ao personagem-título em seu universo particular e solitário, que lentamente se desdobra para o novo, mas que tem ligações profundas com o tempo onde se identificava senhor de si; hoje, Ernesto depende da atenção do filho, do dinheiro do Estado, da ajuda de uma secretária doméstica, apesar da autonomia. Elementos como a biblioteca propositadamente intacta, a máquina de escrever e a ausência de celular envolvem a construção do personagem, dando as camadas acertadas para que entremos nessa sua bolha exclusiva e compreendamos seu processo de afastamento, fazendo com que uma morte próxima seja capaz de reverter seus processos.

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A espinha dorsal do filme é Ernesto e quem o circunda, com atenção frequente para a jovem Bia, uma cuidadora de cães que se aproxima dele. Através de todas as relações mas especificamente essa, o filme discute liberdade e confiança pessoais, além de escolhas individuais que moldam a percepção que as pessoas têm de nós. Tateando por uma realidade que se molda com cuidado, gerando até uma certa tensão inicial, Aos Olhos de Ernesto molda a compreensão do espectador para a gradativa construção de abandono que não apenas o protagonista está submetido, como também perpassa a vida da maioria dos personagens: a solidão é tão absoluta que chega por, a princípio, apagar uma história, para revelá-la de maneira completa quase no desfecho.

Há detalhamento inclusive na arte de Aos Olhos de Ernesto, que se configura inteira para flagrar o tempo passado sem o exaltar – inclusive das mais bonitas cenas do filme é quando o personagem amplifica a própria voz através do encontro noturno com vidas opostas à sua. Talvez um dos grandes problemas do filme seja justamente se fechar na visão do protagonista em excesso, sem colocar para os dois personagens mais jovens (Bia e o filho de Ernesto) uma reflexão sobre aquele homem, sua história e como a fricção entre estas relações transformam a eles, além do próprio. Fica a lacuna de um olhar que talvez ajudasse principalmente o próprio desenho de Ernesto como personagem.

Jorge Bolani, empunhando a bandeira do protagonista, constrói momentos de puro carisma e talento incondicionais, nos fazendo adentrar o universo de Ernesto. De acordo com o trabalho sutil de Ana, ambos nos entregam uma visão sobre a entrada da velhice e aceitação da mesma, com as limitações sendo observadas sem falsas intençĩes de parecer positivadas. Um filme sobre o outono da vida, com luz tão especial de Glauco Firpo, onde tudo conjura para um lugar de compreensão e entendimento de um lugar onde a qualidade da existência foi para outros lugares, mas sem dúvida ainda existe.

Um grande momento
Batalha urbana

[FIM20 – Festival Internacional de Mulheres no Cinema]

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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