Crítica | Festival

One Fine Morning

À espera dos 28 encontros prometidos...

(Un Beau Matin, FRA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Mia Hansen-Løve
  • Roteiro: Mia Hansen-Løve
  • Elenco: Léa Seydoux, Pascal Greggory, Melvil Poupaud, Nicole Garcia, Camille Leban Martin, Sarah Le Picard, Pierre Meunier, Fejria Deliba, Jacqueline Hansen-Løve
  • Duração: 110 minutos

Mia Hansen-Løve estava temporariamente afastada da minha admiração. Após o (bastante) superestimado A Ilha de Bergman e o absolutamente equivocado Maya, aguardávamos seu retorno às origens onde seu principal talento fosse reencontrado – a radiografia das simples constituições. Uma filmografia invejável tinha colocado Hansen-Løve em comunicação direta com áreas inquietas de Eric Rohmer na busca por um diálogo com o que de mais primitivo poderia existir nas relações humanas, ela tem essa aproximação. Primitivo no sentido de embrionário e básico, para onde nossos esforços carregam uma carga pesada de compreensão emocional acerca do que está no outro, e reflete em nós. One Fine Morning (quando o Brasil deixará de ser brega e parará de traduzir títulos de filmes em outra língua que não o inglês para o inglês?; faz muito pouco sentido chamar um filme francês por algo que não esteja no idioma original ou no nosso) é um retorno, ainda bem. 

Assim sendo, existem muitas filigranas onde Hansen-Løve pode explorar e o faz aqui, tendo a consciência de que o peso das coisas está mais no não-visto e não-verbalizado, do que exatamente no que existe e é palpável. Ela já o fez dessa forma na parte robusta de sua filmografia, O Que Está Por Vir, por exemplo. Aqui temos uma moça, pra mim ainda muito jovem, chamada Sandra, mãe solteira, com uma vida ‘gorda’, ou seja, obrigações que não param de pular na sua direção, um sem números de preocupações mais ou menos mundanas, acertos grandes demais para a concentração em apenas um deles. Sabem aquele momento onde simplesmente não há tempo suficiente que dê conta de tudo que existe, e as coisas ganham um significado menos urgente por disputarem espaço com uma vida inteira? 

One Fine Morning
Cortesia Mostra SP

Os laços de Sandra estão sendo perdidos. Seu pai quase não consegue mais ver ou mover, sua mãe escolheu deliberadamente não lembrar. Ela ficou no meio, encarregada do que já não está mais funcionando em seus antepassados. One Fine Morning refina um tipo de produção que vêm sendo feito com frequência atual, como o recente Está Tudo Bem, do Ozon – o fim da vida e suas agruras. Aqui, no entanto, existe um processo menos duro para esse olhar, mais participativo e orgânico, menos concreto; as situações fluem de maneira corriqueira e fluidas, embora não lhe falte a pontuação da gravidade. A situação de sua mãe mesmo é outra porque considerada saudável, mas o quanto essa afirmação pode ser feita emocionalmente falando? 

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Uma das maneiras de se elaborar um pensamento sobre One Fine Morning é a respeito do volume de eventos que sobrecarregam Sandra, que não é apenas filha. Ela é mãe, é uma profissional no mercado de trabalho, e de repente se recorda também enquanto mulher sexualmente ativa. A montadora Marion Monnier, habitual colaboradora de Hansen-Løve e que também esteve por trás de Personal Shopper, é extremamente hábil na manutenção do que é ritmo, estabelecendo uma ideia de quebrá-lo com situações contrárias, uma após a outra. Se Sandra está chorando uma perda específica em uma cena, na seguinte estará dando conta de seu trabalho como dubladora, e na posterior da sua relação com sua filha. Não é apenas um modo de mostrá-la como multi tarefas, mas principalmente de encarcerar todo o entulhamento de necessidades que ela passa, não restando muito tempo para grandes (ou pequenos) lamentos cotidianos. As coisas são, e precisam ser maturadas. 

One Fine Morning
Cortesia Mostra SP

É também sobre ter maturidade a respeito das inconstâncias da vida, e sobre como debater traição de maneira adulta, consciente, sem fantasiar positiva ou negativamente o fato. One Fine Morning não pretende tratar uma doutrina a respeito das relações, mas tenta a todo custo conservar verdadeira sua argumentação. E o roteiro vai fundo (mesmo parecendo superficial) ao tentar discorrer sobre como essa protagonista reencontra a paixão, e se revela a um ideal de existência. Como já citado, a maturidade do filme também advém da compreensão de que o sofrimento pode e deve ser circunstancial, porque paralelo às decepções, existe toda uma gama de coisas acontecendo que não podem ser ignoradas. Não se está menos deprimido ou mais feliz ao enxugar as lágrimas e ir trabalhar. 

Se o trabalho de Léa Seydoux (de Azul é a Cor Mais Quente e Crimes do Futuro) é notável em compreender essa pessoa onde há espaço para todos os sobressaltos dentro de si, não há palavras para definir o que faz Pascal Greggory. Aos 68 anos, o ator que foi visto pela última vez no circuito em Frankie poucas vezes esteve tão impressionante; seu trabalho como o pai de Sandra é comovente, desafiador, de uma presença em cena inesquecível. É ele quem transforma a trama familiar de One Fine Morning tão forte, enquanto Seydoux se encarrega de todo o resto. E o que é esse resto? Bom, é carregar pela mão as cores de Hansen-Løve, uma cineasta que não tem medo de parecer menos importante do que efetivamente é. Sua importância, no fim das contas, está em transformar em cinema coisas tão singelas quanto profundas. 

Um grande momento
“não quero mais ser sua amante”

[46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo]

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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