Crítica | Festival

Tenho Sonhos Elétricos

Fios desencapados

(Tengo Sueños Electricos, COS, BEL, FRA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Valentina Maurel
  • Roteiro: Valentina Maurel
  • Elenco: Daniela Marín Navarro, Reinaldo Amien Gutiérrez, José Pablo Segreda Johanning, Vivian Rodríguez
  • Duração: 100 minutos

Uma relação viciada, e cada vez menos saudável, é o ponto de partida de Tenho Sonhos Elétricos, co-produção entre a Costa Rica, a Bélgica e a França que poderia se passar em qualquer desses países pela sua universalidade, mas o fato de estar situado na América Latina nos faz observar sua violência sob um prisma ainda mais triste. É uma estrutura familiar que falhou, com clareza; não há qualquer respeito, de parte a parte, entre pais e filhos. Dito isso, é difícil assistir a certas imagens ali dispostas, pelo grau de gratuidade e rancor empregados. Como proceder diante de relações falidas, que além de tudo reproduzem os feitos uns dos outros? Não há mais perspectiva de imagem de construção, só escombros que precisam ser administrados.

Isso acontece porque pai e filha têm a mesma personalidade irascível, selvagem e absolutamente indomável; não encarem essa afirmação com algum grau de fascínio, são dois seres humanos à beira do descontrole, e muito fáceis de antipatizar. Martin acaba de se separar de sua família quase por completo, mas Eva não irá deixar o pai arrefecer em suas obrigações. Como ambos são muito parecidos (e o desespero da mãe é também por observar a filha indo exatamente pelo caminho do pai), não há uma forma de acordo quando ambos cismam com algo. E seu nível de irritabilidade não é curioso e divertido, mas chega aos limites do perverso. São de verdade duas pessoas que precisam de ajuda, e o roteiro tenta encontrar formas dessas pessoas viverem sem atritos. 

A estreante em longas Valentina Maurel apresenta suas armas de maneira muito complexa, pois busca a empatia do espectador com dois casos perdidos, por assim dizer. Com bastante segurança, a diretora organiza exatamente essa convicção por trás desses tipos destrutivos. Nem é o caso de ter ou não compreensão por eles, mas da sua câmera capturar sua identidade e esmiuçar cada pontilhado daquelas vidas, que são interligadas. Pai e filha, cujo emprego das características ultrapassa o convívio; Tenho Sonhos Elétricos aposta na hereditariedade para justificar os arroubos de ambos. São personagens mais multifacetados do que necessariamente odiosos, suas contradições e seus direcionamentos de violência mais provocam uma reflexão do que sugerem vilania. 

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Tenho Sonhos Elétricos
Cortesia Mostra SP

As decisões tomadas por Maurel, narrativas e imagéticas, equivalem ao quadro geral de ação e reação que constroem esses dois personagens. Nada é racional, tudo é impulsivo e impensado; é o calor do agora que move suas relações com o externo. Quando se batem no elevador, quando batem a cabeça na parede… a ponto da mãe, em determinada cena, bater a cabeça mas se sentir obrigada a dizer que aquilo foi sem querer. O transtorno que Martin adquire, e que provavelmente está sendo herdado pela filha, promove o afastamento de ambos em relação a quem os cerca. Isso não justifica o roteiro do filme deliberadamente sumir com seus personagens secundários, o que eventualmente acontece, mas talvez seja um gatilho de Tenho Sonhos Elétricos lidar assim também com sua linha evolutiva. 

Além de tudo isso, o trabalho de Maurel premiado em Locarno, suscita enorme delicadeza na hora de criar tensão, ou mesmo na produção de seus campos visuais. Sequências como a da primeira vez de Eva, que se relaciona com um personagem inesperado, são tratadas de maneira quase desconstrutiva pela direção. Assim como os delírios que vestem a personagem, quando ela mistura as sensações que surgiram em um parque de diversões assistindo ao número clássico da Mulher Gorila. É uma montagem repleta de cuidado para que Tenho Sonhos Elétricos ultrapasse o ‘coming of age’ tradicional, para se incumbir de radiografar dois personagens em momentos díspares da vida, mas que se comunicam na falta de compreensão que têm das próprias dores. 

Para completar, o trio central de Tenho Sonhos Elétricos nos ajuda demais na convicção das verdades de cada um deles. Daniela Marín Navarro e Reinaldo Amien Gutiérrez saíram com os prêmios de melhor atriz e melhor ator de Locarno, e entregam desempenhos irretocáveis, absolutamente emocionais, desgastantes do ponto de vista físico e senhores de seus atos. É um amálgama que os une de maneira tão acertada, e que provoca no espectador uma sensação incômoda de estar assistindo uma peça de ‘cinema verité’, tão forte é a conexão de ambos às sequências. A cereja do bolo é José Pablo Segreda Johanning, um personagem de progressão assustadora cujo intérprete igualmente nos faz enternecer por um tipo tão humano. Mérito dos atores e de Maurel também, que moldou uma forma muito radical de falar da quebra da bestialidade social. 

Um grande momento
O elevador

[46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo]

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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