Crítica | Festival

Dracula

Até a última gota

(Dracula, ROM, AUT, LUX, BRA, GBR, SUI, 2025)
Nota  
  • Gênero: Comédia
  • Direção: Radu Jude
  • Roteiro: Radu Jude
  • Elenco: Adonis Tanța, Oana Maria Zaharia, Gabriel Spahiu, Ilinca Manolache, Alexandru Dabija, Andrada Balea, Doru Talos, Șerban Pavlu, Lukas Miko, Alexandra Harapu, Eszter Tompa, Alina Șerban
  • Duração: 170 minutos

O diretor Radu Jude retoma o mito de Vlad Tepes, o Drácula histórico da Transilvânia, para refletir sobre criação artística, consumo, e a pulverização da imagem na era digital. Em seu filme, um cineasta em bloqueio criativo “contrata” uma inteligência artificial para seu próximo projeto e o que se segue são vinhetas absurdas, êxtases kitsch e passado reapresentado como espetáculo barato. 

O longa expande o conceito de vampirismo. Não se trata apenas do sangue sugado, mas da criação que se devora, da imagem que se repete e do mito que vira mercadoria. Jude divide o filme em dezenas de fragmentos e, entre sátiras, perseguições medievais, shows em castelos e cenas grotescas de sexo e violência, vai tecendo sua crítica sobre o momento em que o monstro virou show. Ruas de várias cidades da Romênia, cenários turísticos de vampiros e o diretor perdido diante da IA se encontram para um diagnóstico de absurdo pós-digital. 

A concretização técnica desse projeto é tão radical quanto o propositalmente desconexo. Filmado em iPhone 15 Pro, Dracula mistura imagens reais, animações de IA, câmeras que simulam low-tech e efeitos que lembram um vídeo caseiro do YouTube. A textura irregular reforça a ideia de que vivemos no glitch, no excesso, no remake do remake. Cada vinheta parece dizer “já vimos isso, “isso será visto”, “tudo se recicla”.

Mas nem toda intenção se converte em eficácia. Dracula propõe uma anarquia narrativa e formal, e aí está a sua força, mas também a sua falha. A repetição provocativa, a vulgaridade deliberada e a imagem saturada funcionam como crítica, mas podem gerar cansaço ou vazio. O filme força o excesso para ilustrar o enjoo causado pela sobressaturação digital, porém se arrisca a alienar além da conta qualquer possibilidade de sentido ou coesão.

O vampiro que Jude retrata não é o sedutor clássico, e sim o produtor-coletor que nunca alcança o original. O monstro que assombra é a própria ideia de imagem pronta para consumo. Nesse sentido, o filme olha para a Romênia como olharia para qualquer país-marca na cibercultura, com história, trauma, folclore e turismo se misturando num feed infinito. Mesmo que se perdendo em excesso, há uma honestidade radical em Dracula, marca de um cineasta que não alivia, não suaviza e nem busca reconciliação.

A dimensão política emerge justamente quando o vampirismo se torna metáfora do capitalismo e do fascismo, com os algoritmos que drenam atenção, os regimes que sugam vidas e as corporações que parasitam a produção humana. Todos eles “sugam” de alguma forma. Jude mostra que Vlad Tepes foi apenas o início, pois o verdadeiro vampiro é o sistema que extrai valor, imagem e vida sem retorno. Se “Marx explica”, o filme coloca o horror em larga escala, dizendo que o monstro está em nós, no consumo, no poder que circula sem rosto.

No fim, Dracula é mais máquina de destruição de mito do que recontagem, ou até readequação, de lenda. É uma obra que exige paciência, tolerância à digressão e à provocação, e abre uma janela sobre o que significa hoje criar imagens. Como dizia alguém (não sei quem, mas hoje em dia sempre foi alguém importante que disse alguma coisa), podemos até assistir, mas será que ainda sabemos como olhar?

Um grande momento
Um suéter de Natal

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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