Crítica | Outras metragens

Perdoai-nos as nossas ofensas

Um tiro com bala de festim

(Rimetti a noi i nostri debiti , tt17162524, 2022)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Ashley Eakin
  • Roteiro: Ashley Eakin
  • Elenco: Knox Gibson, Hanneke Talbot, Justin Mader, Nathaniel McParland
  • Duração: 13 minutos

Uma das grandes maravilhas do cinema é o seu poder de preservação da memória. Filmar é manter um passado vivo, por mais fictício que seja o mundo frente à câmera. Em tempos de ódio e destruição ativa da memória, como o que vivemos, o cinema se faz ainda mais vital. Semana após semana, nos deparamos com notícias estarrecedoras sobre células nazistas, saudações e códigos supremacistas obscuros sendo exibidos em praça pública (televisão e internet). Isso quando a coisa não é feita na cara de pau, sem código, inclusive por parlamentares eleitos democraticamente. Nós, enquanto humanidade, mas especialmente enquanto brasileiros (piromaníacos por excelência), definitivamente não soubemos tratar as cicatrizes do autoritarismo do século XX. 

É uma tarefa difícil essa de manter o passado vivo. Mas o cinema, quando bem realizado, a executa como ninguém. O passado permanece vivo e pulsante nos planos de um filme. Mas aqui vai a pergunta pesada: de onde emana esse poder? Do conteúdo (ou seja, do discurso) ou da forma (ou seja, do modo como o discurso é filmado)? A resposta sóbria diria que emana de um equilíbrio entre os dois: é preciso que forma e discurso estejam alinhados. Mas essa resposta é chata. Enquanto defensor de um cinema do novo, eu raras vezes me permito valorizar o discurso em detrimento da forma. Do contrário, teremos, cada vez mais, filmes iguais. O cinema de prosa em detrimento do cinema de imagem e som.

Perdoai-nos-as Nossas Ofensas
Netflix

Acredito que o poder do cinema enquanto guardião da memória emana justamente das articulações formais realizadas em cima do material bruto (o passado). Quando isso não é feito, sejamos justos, é evidente que é possível transmitir uma mensagem, mas a chance de ela se tornar invisível em um mar de iguais é alta. Corre o risco de ser esquecida. A indústria do cinema atual é especialista em fazer filmes esquecíveis, mas não pode ser assim com o holocausto. Esse foi meu maior problema com a nova estreia da Netflix, o curta-metragem Perdoai-nos as nossas ofensas, dirigido por Ashley Eakin. 

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Na seara do discurso, Perdoai-nos as nossas ofensas traz uma mensagem simples, com poucas nuances e que vai direto ao ponto. Reflexos de uma história objetivamente brutal: a crueldade do nazismo diante das pessoas com deficiência. No campo da forma, no entanto, o filme parece uma versão Netflix de Vá e veja (Elem Klimov, 1985), talvez o mais brutal dos retratos de guerra já capturados em filme. A comparação com Vá e veja me é útil pois esclarece meu argumento com precisão. Em relação ao conteúdo, os dois filmes não são tão diferentes: os horrores da segunda guerra mundial vistos pelos olhos de uma criança em fuga. Mas o grande poder do filme de Klimov está na falta de polimento de sua forma. Nada é perfeito, tudo é horrível.

Perdoai-nos-as Nossas Ofensas
Netflix

Se queremos retratar o nazismo com fidelidade à memória, a linguagem publicitária da Netflix, afeita ao polimento e à podagem de arestas, me parece o pior dos caminhos. O nazismo era tudo menos polido. “Ah, mas aí o filme não vende, a mensagem não chega a quem tem que chegar”. Não sei se concordo. O catálogo da própria Netflix conta com bons exemplos de filmes forjados a partir de uma linguagem criativa, distanciada da perfeição imagética publicitária, e que fazem, sim, sucesso na plataforma e fora dela. Até o Oscar já premiou filmes de guerra cuja linguagem é tudo menos palatável (como o excelente Filho de Saul, de László Nemes).

Além disso, quando falamos de curtas-metragens, a criatividade formal é ainda mais notável, e representa ela mesma a parte mais interessante de se fazer um curta. A novidade floresce. É que os filmes de menor duração (que geralmente contam com orçamentos infinitamente mais escassos) costumam se apoiar na inventividade para driblar tanto a falta de tempo como a falta de dinheiro e espaço de exibição. Não acho que tenha sido o caso em Perdoai-nos as nossas ofensas. É preciso fazer diferente. O público está lá.

Um grande momento
A criança diante do soldado

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Marcus Benjamin Figueredo

Marcus Benjamin Figueredo é corintiano, cineasta e jornalista, filho da UnB. Também é pesquisador e já atuou como montador de clipes musicais, produtor, curador e membro do júri em festivais de cinema universitário e roteiro. Gosta de sinuca.
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