(Hannah Arendt, ALE/LUX/FRA/ISR, 2046)
Ao estudar a origem, formação e o colapso de projetos nacionalistas a filósofa judia teuto-americana Hannah Arendt concluiu que as experiências totalitárias não são fruto da megalomania de homens autoritários mas sim de projetos de poder imperialistas.
A missão de representar um segmento da vida de uma intelectual tão controversa coube a uma conterrânea de Arendt, a cineasta alemã Margarethe Von Trotta. Com títulos expressivos em sua filmografia, densamente debruçada em temáticas políticas como As Mulheres de Rosenstrasse e Anos de Chumbo, ela não alivia quando biografa a filósofa, hoje largamente criticada por ser referenciada por supremacistas brancos por escritos acadêmicos como “Reflexos Sobre Little Rock”, onde arbitra favoravelmente acerca da segregação racial.
Von Trotta se detém nos últimos anos de Arendt, já professora estabelecida nos EUA e bem aceita mas atormentada pelos demônios do passado e do presente. A relação apaixonada com o intelectual nazista Heidegger está posta, inclusive as ideias nacionalistas deflagram o antissemitismo da própria. Seja por essas relações condenáveis ou por colocar no mesmo balaio da banalidade do mal Hitler e Stalin (provocando grande confusão até os dias de hoje e fortalecendo aqueles que defendem o “nazismo de esquerda”), a cineasta alemã vai expondo as debilidades da mulher, humanamente falha por mais que dotada de uma inteligência loquaz.
Barbara Sukowa mais uma vez mimetiza uma personalidade histórica e fornece uma performance empolgante de Arendt em especial nas cenas onde está discursa – a exemplo do que já havia feito na pele de Rosa de Luxemburgo, em filme também realizado por Von Trotta -, como quando se defende perante seus alunos e colegas algozes após a publicação das reportagens onde aborda o julgamento de um carrasco nazista sob a ótica da suposta colaboração da elite judaica com os horrores perpetrados contra o próprio povo. O filme se detém bastante nesse fato, que depois originaria o livro “Eichmann em Jerusalém”, rendendo anos de inimizade entre Arendt e a comunidade, mas que hoje está apaziguada.
Com sua estrutura episódica intercalada por alguns poucos flashbacks da jovem Hannah na Alemanha da década de 20, seria este filme um retrato fiel de sua biografada? Talvez o seja mas isso nem está em questão. O que o faz sobressair à maioria dos filmes desse subgênero e que é parte da marca de Von Trotta é o discurso crítico e desapaixonado que ela emprega quando retrata figuras históricas e políticas.
Ela é bem sucedida nesse intento seja mostrando o radicalismo em algumas posturas irascíveis de Rosa de Luxemburgo ou o proselitismo de Arendt que, ao não se expressar como o Fascismo (ou as experiências totalitárias), se articula com setores capitalistas e burgueses revestindo a ideologia num discurso de superação dos conflitos de classe em prol de uma unidade nacional.
O filme engaja por orbitar entre a capacidade de Arendt defender suas ideias menos e mais favoráveis, alternando entre cenas introspectivas em que ela se encontra isolada ou escrevendo, rememorando os ensinamentos de Heidegger ou se ressentido do fato de ter sido obrigada a abandonar a Alemanha e/ou ter sobrevivido ao Holocausto por sua capacidade de camuflar a origem; com cenas onde expõe ideias libertárias e ilustra a inegável opressão que sobrevive nos regimes democráticos neoliberais.
Ver o filme, ler as obras de Hannah Arendt e as críticas que autores fazem ao pensamento dela é um exercício valioso. Quem dera que todas as cinebiografias fossem tão argutas e necessárias quanto esta, deixando o público montar por si só o quebra cabeças que forma uma representação de determinada personagem, com todas as virtudes e vícios contidos.
Um grande momento
A defesa de Eichmann no encontro após o retorno de Jerusalém