Atleta A é um documentário dirigido por Bonni Cohen e Jon Shenk que expõe a rotina de uma equipe de jornalistas investigativos do The Indianapolis Star após terem ciência de que o médico renomado Larry Nassar, da equipe nacional de ginástica artística dos Estados Unidos, abusava sexualmente de suas atletas.
O documentário inicia trazendo os relatos de Maggie Nicohls, uma ginasta artística colegial que, antes de mudar para a carreira colegial, representou os Estados Unidos em competições internacionais, inclusive no Campeonato Mundial de Ginástica Artística de 2015, quando ganhou medalha de ouro conjuntamente com o time norte-americano e medalha de bronze pelo desempenho no solo.
Apesar de todo seu empenho e esforço, durante a infância e adolescência, Maggie passou por uma lesão no joelho e outra no menisco, que alegadamente lhe retiraram o passaporte para as Olimpíadas do Rio em 2016, ou, pelo menos, era o que a Federação de Ginástica Artística dos Estados Unidos dizia.
A verdade nos bastidores, contudo, foi bem mais cruel do que tentaram fazer parecer: Maggie, assim como outras 250 crianças e adolescentes mulheres, e 1 jovem homem, de que se tenha conhecimento, foram molestados pelo médico osteopata da equipe nacional de ginástica dos Estados Unidos, Larry Nassar.
As investigações de Atleta A trazem os relatos de algumas dessas vítimas que, assim como Maggie, foram abusadas sexualmente pelo médico que se valia da ignorância das jovens, do desejo da equipe nacional em não “manchar a reputação”, de conhecimentos específicos que o médico tinha sobre as partes do corpo humano, e de acordos de confidencialidade que a equipe nacional obrigou jovens atletas a assinar, para perpetrar seus crimes.
Rachel Denhollander foi uma das 250 atletas que relatou que, em seus tempos de carreira como ginasta, também fora abusada sexualmente pelo osteopata e somente teve certeza de que a Federação estava envolvida nos casos, sendo complacente e conivente com o médico, ao encobrir as denúncias de assédio sexual feitas pelas crianças e adolescentes, quando teve acesso, por acaso, à matéria do The Indianapolis Star, que evidenciava assédios e a omissão da Federação.
Jessica Howard, por sua vez, vencedora do campeonato nacional de ginástica por três vezes consecutivas, nos anos de 1999, 2000 e 2001, com apenas 15 anos de idade, conta que, por mais que tenha sentido desconfortos durante os assédios, foi apenas em 2016 que ela teve certeza de que teria sido mais uma vítima de Larry Nassar.
“Quando a matéria foi publicada, em 2016, eu me lembrei de Nassar. Quando cai a ficha e você percebe que foi assediada e não sabia, nem tinha pensado nisso, isso se torna muito real… como se fosse ontem, como se tivesse acabado de acontecer, como se você tivesse 15 anos de idade”.
Jamie Dantzscher, ginasta da equipe olímpica de 2000, também conta que foi tendo acesso aos relatos que percebeu que também fora assediada, porque Larry Nassar teve o mesmo comportamento abusivo com ela durante suas consultas, em que pese ela nunca ter contado a ninguém e, vendo a matéria investigativa, decidiu que também iria se expor e relatar o que Larry havia lhe feito, afinal, “se ele é pedófilo e eu não fizer nada, eu não vou conseguir viver com isso”.
Após as denúncias, Larry Nassar foi submetido a um comovente julgamento, em que a promotora de justiça exigiu, como condição para o acordo com o réu, que ele se declarasse culpado de posse de pornografia infantil e destruição intencional de provas (uma vez que a equipe policial que o investigava encontrou seu computador e HD jogado no lixo, repleto de imagens e vídeos de pornografia infantil), além de algumas outras acusações, para se livrar da acusação de viajar com a intenção de cometer assédio no exterior (um crime federal).
Além das exigências supramencionadas, a promotora de justiça conta que definiu os termos da sentença sempre visando a preservação e reparação das vítimas, razão pela qual se preocupou que todas as 125 vítimas que tinham, até então, oferecido denúncias contra o agressor, aceitassem os termos do acordo, e impôs, como condição para a manutenção do acordo, que o réu concordasse que as vítimas fizessem declarações em juízo, caso assim o quisessem. O réu aceitou os termos do acordo.
Em 18 de janeiro de 2018 iniciou-se a fase mais emocionante do processo contra Nassar, quando as vítimas, chamadas de “sobreviventes”, começaram seus depoimentos em juízo. A primeira vítima a se pronunciar foi, justamente, a ex-integrante da equipe nacional de ginástica artística, Jamie Dantzscher, que não foi a primeira a vir a público, mas decidiu que não deixaria um pedófilo à solta.
Em meados de 2017 Larry nassar foi condenado a 60 anos de prisão federal pelo crime de posse de pornografia infantil; em janeiro de 2018, foi condenado a 40 a 175 anos em uma prisão estadual de Michigan por sete acusações de agressão sexual de menores, das quais se declarou culpado; e em fevereiro de 2018 foi condenado pela prática de mais três agressões sexuais, também confessas, à pena de 40 a 125 anos.
Após a condenação do osteopata, mais 150 processos federais e estaduais foram movidos contra ele, a Universidade Estadual de Michigan, o Comitê Olímpico dos Estados Unidos, a Federação de Ginástica dos EUA e o Clube de Ginástica Twistars, onde o médico atuou, em razão dos estupros, assédios e das omissões perpetradas pelo médico e as pessoas jurídicas envolvidas.
Diante das acusações, a Universidade Estadual de Michigan concordou em pagar 500 milhões de dólares para 332 vítimas de Nassar, a fim de resolver extrajudicialmente os processos movidos pelas vítimas, mas o escândalo envolvendo o nome da faculdade, de seus diretores e coordenadores não conseguiu ser abafado.
Sobre todos os diretores do comitê olímpico que permaneceram inertes, mesmo diante das gravíssimas acusações de abusos sexuais infantis, verifica-se que a responsabilização pelas omissões ainda não foi consumada, razão pela qual em junho de 2020, a atleta Simone Biles, que também se declarou uma vítima de Nassar, juntamente com 140 outras vítimas, ajuizou um processo civil contra Federação de Ginástica dos Estados Unidos (USA Gymnastics) e o Comitê Olímpico e Paralímpico do país (USOPC).
O caso retratado por Atleta A evidencia o porquê da existência de normas internacionais e domésticas de amparo às crianças e adolescentes que, via de regra, são mais suscetíveis a serem vítimas das mais variadas formas de abuso, quer em razão de sua menor estrutura corporal, que não lhes garante vantagem em uma situação de uso de força contra si, quer em razão de sua menor capacidade de compreensão das situações que sejam vitimadas, tanto pelo desconhecimento, quanto pelo medo de sofrer abusos ainda mais violentos, caso reporte os fatos a alguém.
Em razão da fragilidade de crianças e adolescentes, em 1959, a Assembleia Geral das Nações Unidas proclamou a Declaração Universal dos Direitos da Criança, um instrumento que proclama 10 princípios para o tratamento de crianças, e que passou a prever que a criança não era apenas um objeto de proteção, mas sim um sujeito de direitos.
Contudo, apesar de certo avanço nos direitos das crianças e adolescentes, os Estados-Membros signatários dessa Declaração não podiam ser coibidos a adotar as medidas ali previstas, uma vez que o documento carecia de coercibilidade, logo, o documento se tornou, na prática, muito mais “para inglês ver” do que, de fato, uma garantia às crianças e adolescentes.
Em 1989 foi quando apareceu o documento internacional de direitos humanos mais aceito de que se tem notícias, ratificado por 196 países, dentre eles, o Brasil, estando excluídos somente os Estados Unidos, que não o ratificaram. Trata-se da Convenção sobre os Direitos da Criança, um documento adotado pela ONU com vigência a partir de 1990, o qual estabelece que criança é “todo ser humano com menos de 18 anos de idade, salvo quando, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes.”. (https://www.unicef.org/brazil/convencao-sobre-os-direitos-da-crianca)
Por força deste documento, surgiu o princípio da proteção integral da criança e do adolescente, e consumou-se a noção de criança como sujeito de direitos, a quem deve ser conferida a proteção integral e prioridade absoluta.
O Brasil ratificou a Convenção sobre os Direitos da Criança em setembro de 1990 e, conjuntamente com as normas prescritas na Constituição Federal (art. 226 a 230), que garantem os direitos da criança e do adolescente, serviu de norte para a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em vigor desde 14 de outubro de 1990.
Vale destacar que no âmbito do Direito Internacional existem também, como medidas de proteção da criança e do adolescente, a Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças (Convenção de Haia), de 1980, cujo objetivo principal é impedir o tráfico internacional de crianças e a Convenção relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional, a qual estabelece normas mínimas e obrigatórias para a adoção internacional. Ambas foram ratificadas e estão em vigor no Brasil.
Há, ainda, as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade (Regras de Beijing), as quais consistem em recomendações sobre a prevenção de delito e tratamento do menor infrator, traçando direitos e garantias que devem nortear a apuração dos atos infracionais.
Diante de todas as normas internacionais, constitucionais e do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990), no Brasil vigem diversos princípios de proteção da criança e do adolescente, de forma mais impositiva do que a proteção garantida pelos Estados Unidos. Vale destacar:
O princípio da proteção integral, previsto no art. 1º, ECA determina que todas as crianças e adolescentes, como sujeitos de direito, são merecedoras de ampla e integral proteção.
Como consequência deste princípio, a Constituição Federal prevê expressamente a “punição severa” do abuso, da violência e da exploração sexual da criança e do adolescente, em seu art. 227, §4º.
O princípio da prioridade absoluta impõe à família, à sociedade e ao Estado o dever de assegurar que os direitos das crianças e adolescentes (e dos jovens, após a EC 65/2010), com absoluta prioridade em relação aos demais indivíduos, razão pela qual crianças e adolescentes têm preferência para receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; e atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública, bem como devem ter primazia a formulação e a execução das políticas sociais públicas benéficas às crianças e aos adolescentes, bem como subsistir a destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção da infância e juventude.
Em razão deste princípio da prioridade absoluta, não pode o gestor de um Estado, recebendo verbas públicas, destiná-las a criação de locais de trabalho, ao invés de destiná-las à educação ou merenda escolar de crianças e adolescentes, sob pena de incorrer em improbidade administrativa, por violação do princípio constitucional.
Por fim, em que pese existam diversos outros princípios, destaca-se o princípio da condição peculiar da pessoa em desenvolvimento, o qual aduz que as normas contempladas no ECA têm como destinatário um sujeito especial de direitos, em processo de formação, razão pela qual toda medida a ele aplicada deve levar em consideração esta condição especial da criança e do adolescente.
Verifica-se, assim, que as normas brasileiras cuidam de tratar com maior zelo da criança e do adolescente, protegendo-os de eventuais abusos estatais ou pessoais dos quais possam ser vítimas, com um tratamento sempre preocupado com condição de “sujeito em desenvolvimento”, isto é: um indivíduo que, por mais que seja sujeito de direitos, ainda não possui pleno conhecimento de seus atos, do caráter ilícito ou lícito de sua conduta, ou de pessoas à sua volta.
Quando se analisa as falas de algumas vítimas de Atleta A, essa condição de pessoa em desenvolvimento, verificada nas crianças e adolescentes, fica evidente quando as atletas e ex-atletas relatam que sequer tinham certeza de que teriam sido efetivamente abusadas sexualmente.
As crianças e adolescentes ainda não têm amplo e profundo conhecimento sobre os limites legais e pessoais que podem reivindicar quando abusadas, razão pela qual costumam ser um alvo fácil para predadores sexuais, que não medem esforços para consumar o assédio das mais diversas formas.
Atleta A evidencia que as jovens atletas eram abusadas por um homem que se apresentava como gentil, delicado, simpático e sorridente, que presenciava os abusos psicológicos que as jovens sofriam durante os treinos (ex.: deveriam treinar com ossos deslocados ou quebrados; com fome; com sensação de desmaio; e incansavelmente, sempre visando o melhor de si e a “melhor forma física”) e, se valendo dessa informação, fingia ser amigo das jovens, lhes dando chocolates e biscoitos escondido, fazendo piadas ao chamar os treinadores de “monstro” ou “bruxa”, para ganhar a confiança das crianças.
Essa confiança é garantida, justamente, por causa da condição de vulnerabilidade e fragilidade em que se encontra toda criança e adolescente, mormente aquelas que sofrem abusos psicológicos, mas sequer sabem que o estão sofrendo, e, então, ficam ainda mais vulneráveis para serem vítimas de algozes sem escrúpulos, que consumam a violência sexual.
Sabendo da ilicitude de seus atos, o médico ainda se deu ao trabalho de divulgar filmes em plataformas de vídeo, para “normalizar” os abusos cometidos, utilizando termos técnicos para tentar fazer parecer que introduzir o dedo nos orifícios anais ou vaginais de crianças e adolescentes seria uma medida médica para a cura de alguma lesão óssea.
No Brasil, desde 2009, o crime de estupro passou a incorporar também o ato libidinoso, razão pela qual, em que pese não consumar a conjunção carnal, o indivíduo que incorra em atos similares aos praticados pelo médico, desde essa data, seria penalizado pela prática de estupro, e não de “ato libidinoso”, sujeito à pena de 8 a 12 anos de reclusão, se perpetrados contra vítimas menores de 18 e maiores de 14 anos (art. 213, §1º, do Código Penal), ou de 8 a 15 anos de reclusão, caso as vítimas fossem menores de 14 anos (art. 217-A, CP).
Além das previsões descritas no Código Penal, em 2008 foram também incluídas ao Estatuto da Criança e do Adolescente as previsões dos crimes de produção, reprodução, direção, fotografia, filmagem ou registro, por qualquer meio, de cena de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança ou adolescente (art. 240), com a pena de 4 a 8 anos de reclusão; e de “adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente” (art. 241-B), com a pena de reclusão de 1 a 4 anos e multa, ambas condutas também praticadas pelo osteopata.
Atleta A, portanto, é de suma importância para reafirmar a necessidade de medidas protetivas de crianças e adolescentes, uma vez que evidencia que no único país que não assinou a Convenção sobre os Direitos da Criança foi, justamente, onde um médico viu guarida para consumar, pelo menos, 251 estupros e assédios sexuais de crianças e adolescentes e, ao mesmo tempo, onde as crianças sequer sabiam que estavam sendo vítimas de crimes contra sua dignidade sexual.
(Athlete A, EUA, 2020, 103 min.)
Documentário | Direção: Bonni Cohen, Jon Shenk | Roteiro: Bonni Cohen, Jon Shenk