(His House, GBR, 2020)
O Que Ficou Para Trás, filme de estreia de Remi Weekes nos longa-metragens, vem causando barulho e não sem razão. Ao lado de filmes como À Sombra do Medo, é um terror que se debruça em cima de grandes crises humanitárias – aqui, no caso, a guerra no Sudão do Sul, iniciada em 2013 entre as etnias dinka, na situação, contra os nuer, na oposição. Em 7 anos, o conflito já causou cerca de 400.000 mil mortes e contribuiu para a grande crise dos refugiados da década passada, obrigando mais de 2 milhões de sul-sudaneses a deixarem suas casas.
E Weekes deixa isso claro desde o primeiro momento: esse é o verdadeiro horror de O Que Ficou Para Trás, a história do casal de refugiados Bol e Rial que fogem para a Inglaterra e descobrem que a casa que o serviço social os designou está assombrada por uma força desconhecida. Enquanto a mulher sente culpa de ter conseguido transporte por abduzir uma criança da mãe apenas para perdê-la no mar depois, o marido finca o pé, pois já sacrificou demais para voltar ao seu país.
E não é que a execução do lado sobrenatural falhe nesse sentido, pois é competente enquanto tudo está no reino da sugestão. Depois, quando começa a assombração de fato, é macabramente sangrento, mas é quando a plasticidade da composição é absorvida pela narrativa. É uma conclusão natural e óbvia do que veio antes, da construção, onde reside o maior impacto.
Sim, pois acompanhamos os imigrantes do Sudão sofrerem todo tipo de humilhação: são entregues uma casa suja e abandonada, com o serviço social apresentando uma lista de proibições absurdas sob pena de serem enviados de volta para de onde fugiram; são zombados e assediados nas ruas labirínticas, inclusive por vizinhos; são perseguidos nas lojas onde entram e tratados como objeto exótico por parte dos londrinos. Todo o ambiente é cruel e pouco receptivo antes mesmo da primeira criatura aparecer.
O Que Ficou Para Trás lembra muito o Polanski da trilogia do apartamento formado pelas obras-primas Repulsa ao Sexo, O Bebê de Rosemary e O Inquilino. O clima é lento e pouco dinâmico; a experiência imersiva é de enlouquecer junto com os personagens lentamente. Mas guarda um diferencial muito bem explorado: se nas obras dos anos 60/70 as preocupações externas eram condizentes com europeus e americanos brancos, em elementos como a sexualidade, cultos pagãos, crise no casamento, identidade de gênero, aqui a solidão que os personagens experimentam é de serem eles próprios o elemento externo, tentando se adaptar a um corpo social que se recusa a recebê-los. Uma inversão de escopo na história da casa assombrada bastante perspicaz, portanto.
Na condução da história, há uma sensação que ainda falta um tanto a Weekes amadurecer: certos recursos são usados em excesso, como a música pontuando de maneira óbvia momentos tensos e dramáticos, o que expulsa o elemento de estranheza e torna a condução delas mais comuns; o mesmo pode ser dito como a montagem se aferra ao recurso “agora está lá, agora não está mais”. Tudo não exatamente ruim, até competente, mas comum.
Mas se o elemento sobrenatural nem sempre entrega o que merece, o caminho até ele está recheado de momentos inspirados. O uso do movimento de câmera nas sequências de sonho tem um caráter ilusionista que realmente constrói um caráter onírico, absurdo, onde os protagonistas frequentam diferentes lugares ao virar de uma esquina.
Segundo reza a cartilha mitológica das casas assombradas, os fantasmas advém de uma perturbação emocional anterior, que deixa os seus moradores vulneráveis. Espíritos que não conseguem descansar exploram as fraquezas emocionais dos ainda vivos. E no caso, os que aqui chegaram nessa casa carregam seus próprios fantasmas, criando as próprias assombrações – no caso, a culpa da sobrevivência. Em suas mentes, estão vivos – mas a que custo?
Nesse cruzamento de abordagem social e psicológica do horror – as circunstâncias políticas do mundo criando desterrados que projetam onde chegaram seus medos e inseguranças, manifestando então seu lado mais sombrio – reside a grande força O Que Ficou Para Trás. Tudo que era sentido ao longo da projeção manifesta-se de maneira até um tanto óbvia na sua sequência final, o que nos deixa com certeza que não fosse o vício por recursos narrativos mais didáticos, estaríamos de fato diante de um grande filme.
Mas considerando um estreante trazer tantas boas ideias a ponto de alcançar um reconhecimento global para sua obra, pode-se julgar estarmos diante de um novo cinema muito interessante. Enquanto esperamos o próximo projeto de Weekes, ficamos com esse aqui, que nos faz perguntar: que horror criamos para o mundo?
Um grande momento
O sonho – ou pesadelo – do jantar na Inglaterra
Fotos: Aidan Monaghan/NETFLIX