- Gênero: Ficção científica
- Direção: Valentyn Vasyanovych
- Roteiro: Valentyn Vasyanovych
- Elenco: Andriy Rymaruk, Liudmyla Bileka, Vasyl Antoniak, Lily Hyde
- Duração: 106 minutos
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Filmes com bases militares, sejam estudos de guerra ou observações sobre a dialética das atividades de seus profissionais, costumam trazer inerente às obras um papel de investigação sobre o trabalho e seus processos, sua rotina (mesmo quando aparenta não haver), seus códigos internos que precisam ser devidamente realizados em etapas. Em um lugar de pós-guerra, Atlantis, que está disponível na recém-lançada plataforma Reserva Imovison, de uma das mais importantes distribuidoras de cinema de arte no Brasil, se insere nessa categorização ao seguir um homem mergulhado em uma apatia que nunca é desprovida de rompantes, ainda que eternamente recue a um lugar de origem estática, porém sem deixar de testemunhar uma espécie de burocracia da morte, quando tudo é mecânico, até o fim.
O diretor ucraniano Valentyn Vasyanovych imagina que a guerra entre seu país e a Rússia acabou em 2025, e a partir daí ele cria um universo pós-apocalíptico que infelizmente não está longe da realidade de muitos países, inclusive o nosso. Tudo é escasso, incluindo o material humano – falta água, mas também empatia. As imagens são captadas em grande maioria de maneira estática, o que remete a essa imobilidade diante da tragédia cada vez mais desoladora; há frieza em como a matéria é representada em cena, e isso é justificado sem a necessidade de verbalização. Em um projeto tão sensível no que vai dizer, seu diretor escolher mostrar explicitamente e suprimir do diálogo essas mesmas ênfases é de uma autenticidade rara.
Vasyanovych tem necessidade do real e busca essa textura através dos espaços físicos hiper realistas (por se tratarem de reais espaços de guerra) ou da manutenção de atores não-profissionais aos personagens, com resultados muito felizes onde o diretor compreende a força de suas escolhas e as conjuga de maneira fundamental. O diretor não tenta tirar do seu filme uma entrega documental, mas realiza com essas opções narrativas um documento palpável sobre o papel da guerra na existência humana; ao lhes arrancar o artifício e oferecer uma experiência exasperante, Atlantis supera o histrionismo estético de uma produção tradicional para abraçar o rigor da construção de planos.
Sua proposta de mergulhar na morosidade dos dias da melancolia e submergir no cumprimento do dever acaba por aproximar o filme do Nuri Bilge Ceylan de Era uma Vez na Anatólia, onde também assistíamos à rotina de processos táteis do trabalho em questão. Tanto ao observar o rescaldo do militarismo na vida de dois amigos, e em como a guerra destrói até quando parece formar, quanto na espécie de “segunda chance” que Serhiy recebe, o filme se ocupa em filmar e se apropriar dessas passagens de maneira distanciada, respeitando os envolvidos e suas tragédias diárias. Aos 20 minutos, no entanto, a primeira de uma série de cenas espetaculares acontece, quando a câmera deixa de testemunhar eventos para se inserir neles, e o resultado é como se uma espécie de pesadelo em chamas tomassem conta da tela.
Atlantis lida com o fogo de diversas formas, mas talvez a mais constante seja a que mais se assemelharia com a experiência que o filme em si quer legar ao espectador, que é uma resistência diante de tudo que tenta destruí-lo. A resiliência no filme acomete até coisas imateriais, como os ossos, a lava, o carvão restante de um incêndio, tudo está em um limbo permanente, à espera de uma renovação que não tem interesse em ressurgir. Mas o encontro com o novo faz Serhiy se permitir compreender os eventos dos quais participou, e passá-los a limpo, exumando um passado para enfim alicerçar o futuro.
Nesse sentido, uma das cenas finais, onde após uma catarse positiva e esperada enfim adentra a narrativa vemos finalmente o personagem abraçar a luz e olhar o horizonte, é crucial para que seu arco dramático seja completo e uma etapa seja concluída, com direito a ressignificação da impactante cena de assassinato inicial ser transformada, em sua definição gráfica. O diretor mostra que consegue reescrever não a história da Ucrânia, mas que essa história só será reescrita quando cada indivíduo refizer seus passos. Por mais que o passado nunca fique definitivamente para trás, ainda assim é possível recriar algo diferente à partir dele.
Atlantis apresenta um trabalho de decupagem e mise-en-scène bem apurado, com enquadramentos que trazem espanto pelo cuidado e dedicação empregados na intenção de contar essa história da melhor forma possível, como é o caso do desfecho do filme, em últimos 15 minutos que crescem muito com a lembrança. Mesmo que seu lugar imagético cause desconforto pela forma sincera com que trata sua cinematografia (a fotografia também é a cargo de Vasyanovych), não podemos acusar esse vencedor da Mostra Orizzonti do Festival de Veneza de complacência com sua proposta, que é habilmente desenvolvida para tecer sua narrativa em torno dos elementos básicos (terra, fogo, água e ar) regendo a vida de sobreviventes da sua própria História.
Um grande momento
Na fundição