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O Souvenir

(The Souvenir, GBR, EUA, 2019)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Joanna Hogg
  • Roteiro: Joanna Hogg
  • Elenco: Neil Young, Tosin Cole, Jack McMullen, Frankie Wilson, Swinton Byrne, Hannah Ashby Ward, Janet Etuk, Chyna Terrelonge-Vaughan, Tom Burke, Tilda Swinton, Alice McMillan, Barbara Peirson, James Dodds
  • Duração: 120 minutos

Jean-Honoré Fragonard pintou em 1778 um retrato de uma mulher rabiscando palavras de amor numa árvore. Filme cult que traz um amálgama da beleza frívola do rococó — o estilo de arte caracterizado pela luz difusa, a graciosidade e picardia advindas de uma noção de intimidade — e do agridoce romance entre uma estudante de cinema e um yuppie, O Souvenir chega com quase dois anos de atraso às plataformas brasileiras.

Honor Swinton Byrne é o alter ego de Joana Hogg nesse quase que autobiográfico estudo da vida de uma jovem de origem aristocrática que quer dizer algo através dos filmes. Que mesmo com a fruição dificultada pelas direções por vezes monótonas que a narrativa toma é um experimento árido e belo, um retrato de uma mulher adquirindo “agência” sobre si. Jovem, imatura, mimada e perdida entre tanta gente descolada e aparentemente segura de si, Julie busca a própria voz. O Souvenir apresenta então um atributo dramático corporificado na presença fleumática e inebriante de Anthony (Thomas Burke), um não tão jovem executivo de relações internacionais, que toma conta de vida e dos pensamentos da futura cineasta. Viciado em heroína, ele contrapõe o peso da adicção com uma capacidade de filtrar tudo ao redor e selecionar o que deve nutrir a criatividade de Julie na redoma-cama onde transcorre boa parte dos diálogos entre os dois.

O senso de intimidade perene, de silêncio e de vida privada compartilhada pela câmera fria e em algumas tomadas com mais calor, mimetizando um filme 16mm, mergulha em closes ou planos mais próximos ainda que em sobreposição — filmando a nuca de Julie ou o perfil de Anthony –, que são a geografia visual desse pequeno e pessoal filme de Joana Hogg. O trabalho de cinematografia de David Radeker, com os tons acinzentados abraçados pelo figurino sempre muito sóbrio, evoca bem o sentimento de frivolidade e desesperança do início dos anos 80 com o tatcherismo.

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O Souvenir
Divulgação/A24

“Você está perdida e sempre estará”

A atenção polida, o respeito e o tratamento aparentemente de igual para igual servem como uma distração para todo o jogo psicológico e o abuso emocional provido por Anthony. Com seu marcante lábio leporino (agora Joaquin Phoenix não é mais o único ator com essa característica), ele solta máximas como “Não sabemos o que vai na mente ou no coração dos personagens, mas é o que queremos saber quando vemos um filme”. O Souvenir meio que navega então pela crescente ruína emocional de Julie, ao mesmo tempo em que ela vai eclodindo com o filme que se parece mais com o que carrega em seu íntimo e menos com a ideia preconcebida que tinha.

O namorado, sem meias palavras, argumenta que ela foi encurralada pela própria vida e aí, no susto, pensou “ah quero ser diretora de filmes”. E que ela pensou que a metáfora da cidade apodrecendo e do apego esvanecendo, da narrativa sobre o menino pobre que perde a mãe a faria ser verdadeira sem ser real. O que Julie, na sua ingênua arrogância não nota é que, por mais que as pessoas sejam reais, o que ela busca é documentar uma ideia pré-concebida da vida nas docas e não partir para criar algum novo, desenhando nuances que se encaixam no que ela quer dizer. A montagem de Helle Le Fevre ressalta o desequilíbrio entre tons nos quais oscila O Souvenir, indo da extrema verborragia nos diálogos entre o casal, os amigos e na faculdade de cinema até os momentos na cama ou a sequência em Veneza — que evoca Trama Fantasma — e destoa, talvez propositalmente, seja na suntuosidade ou na fabulação de um romance sem as beligerâncias.

Em Londres, a cenografia do apartamento burguês de Julie, onde transcorre a maior parte da história, traz a placidez e a importância do tempo dilatado em um espaço frio e sem personalidade. A sensação de desorientação especial, afinal não é fácil diferenciar o quarto do apartamento do quarto na casa dos pais — a mãe inclusive sendo interpretada pela grande Tilda Swinton, mãe de Honor — que a estudante mantém e onde se refugia de e com Anthony.

O Souvenir
Divulgação/A24

“Eu não tive um segundo para medir a dor”

E por mais que Hogg se perca lentamente na metalinguagem O Souvenir tem momentos realmente brilhantes: a espiral de destruição no apartamento, os roubos, os arroubos da abstinência. A cena em que Julie está escrevendo mas não para de andar pela sala, com receio do que está por vir. Ou quando Anthony saindo banheiro e se prepara para deitar, mas, visivelmente mal, faz questão que ela confirme que ele aparenta estar recuperado. Ou na cena onde os estrondos vêm primeiro, até que Julie acorda, vai para a sala e vê o namorado entre o vômito e o sangue, manifestando sua angústia. E, sim, muito no filme funciona graças à Tom Burke com sua construção taciturna e fascinante, ele se torna a âncora que solidifica a história e a materializa como uma peça de cinema de pelo menos uns 50 minutos, dentre as suas quase duas horas de duração — sim, são 70 minutos quase que sempre belos, porém monocórdicos.

A cineasta, já sexagenária, ganhou reconhecimento tardio a partir do triunfo em muitos festivais com essa austera observação sobre o amor conjugal e o mundo do cinema independente. Imperfeito, O Souvenir cresce a partir do ponto em que os encontros enfadonhos com outros artistas e ex-estudantes de cinema diminuem e o ponto focal se torna o declínio da relação de Julie e Anthony a partir do aprofundamento do vício dele e do vínculo entre eles. Agora, sem o personagem de Burke na continuação, resta entender como Honor Swinton Byrne irá trazer nuances à sua personagem e manter o interesse na história, nessa busca por uma liberdade moral dos privilégios, a vontade de “sair da bolha para enxergar os arredores”.

Porque essa parte I, especialmente entre o primeiro e o segundo atos de seu roteiro, mostra Joana Hogg ensimesmada na sofisticação que torna o filme hermético e de difícil capacidade de cativar largas audiências. Mas é um alívio a guinada, o ritmo que encapsula o luto, a frustração, o amor e o propósito — tanto das observações sociais suaves quanto da jornada da protagonista. Ela quis uma experiência cruel e crua, viveu uma relação abusiva e apaixonada, foi o monstro com Anthony. Mantém o sobretudo dele no armário. Vai terminar seu filme, último take no galpão da faculdade. Fim. Quando Julie olha para a câmera, rompendo a barreira, esboçando fragilidade e, pela primeira vez, uma certeza recai sobre quem assiste. Ela conheceu a si. A porta do galpão do ser se abre. É o souvenir que vai apreciar e guardar consigo como a lembrança que a definiu.

O Souvenir, com a parte II já tendo apresentada em Cannes 2021, foi eleito em 2019 como o melhor filme daquele ano pela revista Sight & Sound. A produção da A24 — com produção executiva de Martin Scorsese — é a primeira a ter uma continuação produzida pelo estúdio, que deve chegar aos cinemas em janeiro do ano que vem, apresentando a vida de Julie após formada como uma jovem cineasta.

Um grande momento
Pés descalços que afagam sob os mocassins

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Lorenna Montenegro

Lorenna Montenegro é crítica de cinema, roteirista, jornalista cultural e produtora de conteúdo. É uma Elvira, o Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema e membro da Associação de Críticos de Cinema do Pará (ACCPA). Cursou Produção Audiovisual e ministra oficinas e cursos sobre crítica, história e estética do cinema.
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