- Gênero: Documentário
- Direção: Kristina Lindström, Kristian Petri
- Roteiro: Kristina Lindström, Kristian Petri
- Duração: 93 minutos
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“O ser humano ama e respeita seu semelhante enquanto não tem condições de julgá-lo, e o desejo é produto de um conhecimento imperfeito”
Thomas Mann, em Morte Em Veneza
O belo e suas características desejáveis e infindáveis, as digressões na finitude, quando Thanatos sufoca o amor e a beleza. Não há maneira de conservar o Fédon, o Dorian Gray. O Apolo. Ou, no caso, Tadzio, O Garoto Mais Bonito do Mundo. 50 anos depois de ter recebido essa alcunha o ator Björn Andresen, intérprete do personagem do jovem mancebo na adaptação cinematográfica da obra do autor alemão realizada pelo esteta Luchino Visconti, resume: “não resta muito de mim.”
Devastador mesmo que não objetive sê-lo, o filme de Kristina Lindström e Kristian Petri estreado em Sundance e que integra a programação da Mostra SP acompanha o outrora angelical menino que desfilava pelas praias do Lido veneziano, aos 15 anos; Aos 66 anos, ele refaz caminhos por onde passou rememorando dores e alegrias. Belamente fotografado e musicado, O Garoto Mais Bonito do Mundo joga com a tristeza profunda em cada off de Andresen ao narrar como se tornou Tadzio para o bem e para o mal.
Em cada plano do documentário que o coloca no centro do cenário, seja uma praia tempestuosa à noite, as margens do rio Sena em Paris, numa estação de metrô, no apartamento diminuto em Estocolmo a razão apolínea e paixão dionisíaca presentes em Morte em Veneza também fazem morada na vida de Björn Andresen. Harmonia e Caos o perseguem desde o momento em que Visconti o escolheu para o filme. Desde que sua a mãe se matou. Desde que ele também tentou tirar a própria vida.
O preço que o cineasta italiano cobrou de Andresen foi alto demais, as imagens de arquivo fazem questão de demarcar bem esse momento faustiano: em Cannes, ao declarar que Tadzio/Björn Andresen era o garoto mais bonito do mundo a maldição está feita. Aquelas palavras o colocaram num invólucro e o encerraram dentro de um sarcófago.
“Tudo ao seu redor era sublime”
O ídolo original, que deu origem a essa cultura no Japão como o primeiro ocidental a deixar multidões histéricas em 1971, Tadzio/Björn Andresen experimentou uma fama sem limites. Reencontra o empresário japonês em visita à Tóquio, que mostra fotos da época e comenta como ele tinha “ouvido ótimo e logo aprendeu a cantar em japonês” mas também guardava um lado sombrio que fazia ele se desligar com muita facilidade.
O conceito de mangá bishounen, termo que significa, literalmente, “belo jovem” cuja beleza transcende limites de gênero e de orientação sexual também é explorado em O Garoto mais Bonito do Mundo por meio da entrevista com a grande Riyoko Ikeda, criadora de Lady Oscar que se inspirou na beleza quase surreal de Andresen para criar sua personagem.
“Não me sentia mais humano”
Mas o sonho de Tadzio logo dá lugar a desolação, quando a beleza vai mais e mais se tornando algo maldito. O período em Paris, difícil de ser abordado mas introduzido com muito cuidado e ética pelos documentaristas, dá conta de como o jovem ator e cantor foi explorado por pedófilos que para ter sua companhia chegavam a pagar uma mesada de 500 francos semanais para mantê-lo num apartamento na capital francesa, o que perdurou num período entre 76 e 77. As fotos e filmagens são montadas com imagens atuais de Björn Andresen refazendo os caminhos por onde passou mas antes de tudo, sendo apresentado ao público hoje como um adulto deprimido, insalubre, que deixa o gás ligado do fogão para “se aquecer” mas que na verdade já desistiu de viver há tempos.
A melancolia profunda na qual ele está imerso se assemelha a de Gustav von Aschenbach – podendo ser Gustav Mahler, compositor que inspira o personagem e que faz Visconti assumir de forma tão imagética e profunda na sua construção narrativa a música, em especial o Adagietto vai penetrar fortemente na cultura pop e ser lido como queer. E isso não passa a largo no documentário sobre Tadzio, essa música em especial ressoa nas passagens onde os olhos azuis de Björn contemplam o nada ou miram a câmera.
“Não queria que você se sentisse só”
A namorada faxina o apartamento em estado deplorável para evitar que ele seja despejado e o desespero na fala dela não tem nada de arquitetado ou despropositado. O tom de O Garoto Mais Bonito do Mundo, se um documentário mal conduzido, poderia facilmente descambar para o tendencioso e exploratório mas tem assegurado seu viés humano pela conexão sincera que estabelece com Björn Andresen e os seus. O depoimento da filha, Robine, sobre o fatídico 11 de agosto de 1987, um dia após o aniversário dela, quando ele tentou contra a própria vida – e que é montado conjuntamente a imagem de Björn jovem com ela no colo e depois com ele, velho, respirando profundamente de olhos cerrados – é dilacerante.
Como a avó, deslumbrada com a fama, que o acompanhou durante as filmagens de Morte em Veneza, dormiu e não se assegurou que ele estivesse seguro no último dia… Quando foi levado até uma boate gay e bocas simulavam sexo oral olhando para ele, apavorado. E desde então passou a tomar anfetaminas e outros remédios para amortecer, para ficar eufórico, se manter no sonho e ao mesmo tempo não ver e não sentir. Já quase no fim de O Garoto Mais Bonito do Mundo, Bjorn revela a lembrança da mãe que partiu cedo demais, quando ele tinha 6 anos. “Quando olhamos para as estrelas para que lado estamos olhando?”
A filha dele questiona, se a avó dela viva fosse quando o pai se tornou uma estrela do cinema será que os sonhos dele teriam sido destruídos com tamanha facilidade pelo mundo tão cruel e o fetiche dos outros. A questão fica no ar, como os planos contemplativos, que abrem e encerram o ensaio sobre a história do homem por trás do Tadzio, cuja beleza inundou as telas e custou a própria alegria de viver.
Um grande momento
“Quando eu crescer, vou salvar a mamãe”