- Gênero: Romance
- Direção: Billy Porter
- Roteiro: Ximena García Lecuona
- Elenco: Eva Reign, Abubakr Ali, Courtnee Carter, Kelly Lamor Wilson, Grant Reynolds, Renée Elise Goldsberry, Naveen Paddock, Miriam Laube, Manu Narayan, Vanita Harbour, Lenora Nemetz
- Duração: 96 minutos
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Literalmente não é todo dia que algo como Tudo É Possível estreia nos cinemas, apertando muitos botões e acendendo muitas questões. Infelizmente um filme como esse não está estreando mesmo nos cinemas, e sim chegando ao Amazon Prime Video, um dos canais de streaming que hoje permitem que o audiovisual converse sobre temas que deveriam estar nas mesas de bar, nas conversas do jantar, nos papos de whatsapp de qualquer um. Precisamos ver o copo meio cheio: quando, há 10 anos atrás, uma comédia romântica adolescente protagonizada por uma menina trans seria sequer produzida, e ainda mais, distribuída com igualdade no mundo todo? Chegou esse momento, onde uma produção com esse tema e com a qualidade vista aqui, precisa estar na boca de todos – independente de qualquer outra coisa, porque é um bom filme.
Mas a estreia do premiado ator Billy Porter (de Pose) na direção está tentando dizer muitas coisas para o espectador, muito mais ao que podemos pensar e agregar durante a assistida e posterior a ela, o que vamos levar dessa experiência, do que criar um painel imagético de potência. A potência do que é levado pela narrativa já é tão evidente, são tantas coisas (até óbvias) que estão em consonância no roteiro, que, pra mim, não foi necessário ir além, ao menos dessa vez. Sua essência pretende passar por diversas etapas do entendimento – e da falta de – em relação ao desabrochar trans, com algum didatismo ao mesmo tempo em que se livra de outros tantos. Já temos A Vida de Jazz para nos ocupar de muitos dos percalços pelo qual uma adolescente trans precisa enfrentar, não creio na utilidade de acompanharmos os primeiros passos dessa jornada.
Nesse sentido, Porter e a roteirista Ximena García Lecuona escolhem um lado ainda mais suculento para seu foco – a presença de Kelsa já é uma realidade para todos os que a rodeiam, seus problemas não existem por ela ser quem é, mas por ela querer o mesmo espaço que é dado a qualquer ser humano. Nesse momento, aí sim vem à tona como a homofobia de todos os personagens tinha sido decodificada em uma normatividade que não abarca todas as questões. A passabilidade da protagonista, que era até então um dado resolvido pelo coletivo, passa a ser colocada em cheque pelos demais. Dessa forma, o que Tudo É Possível ambiciona é muito maior do que a eterna busca pela aceitação, mas também é ela: estar nos lugares e se saber quem é, ser reconhecida como tal, mas permitir que seus sonhos estejam em pautas coletivas, ocupando lugares e disputando igualdades.
Está tudo nas falas de Kelsa, que é uma blogueira acidental, recorre a vídeos confessionais que ela mantém em um lugar de exposição relativa, mantendo tudo em uma esfera menor. Ali, o filme exercita uma ideia de trazer para o público seus debates, pensando que não apenas os seres desconstruídos e introduzidos ao universo terão acesso ao filme. Cabe a nós, que já estamos próximos ao que está sendo discutido, ter a delicadeza de saber que um filme, ou especificamente esse filme, precisa de um diálogo mais profundo e ir além de sua zona de compreensão. Antes que o leitor morra de medo de um título tatibitati sobre um lugar que já temos contato, não é nada incômodo nem tem conotação de aula prática – Tudo É Possível tem um clima delicioso demais, e segue seus personagens de maneira bastante independente, inclusive nas resoluções finais.
É pertinente que o filme tente mostrar mais de um lado de seus personagens, em suas tentativas de ajudar e falhar, ao detalhar que, muitas vezes, a ajuda que oferecemos têm muito mais a ver com nossa disponibilidade e entendimento, que muitas vezes não está na totalidade dos fatos. A partir de uma hora de duração, indo para sua reta final, a produção não perde sua graça e leveza, mas adentra em lugares menos frugais – querendo, sem tirar a energia positiva, elevar as discussões que o filme já dispunha anteriormente em suas entrelinhas. São observações muito típicas, como a do pai que acha que seu filho é gay por namorar uma menina trans, mas a cada uma dessas colocações, o filme tenta debater com um número maior de pessoas, e precisamos positivar todas as tentativas de ampliação de um olhar mais afastado da normatividade.
E é absolutamente saudável ver que uma produção teen padrão, dessas produzidas a toque de caixa por um número cada vez maior de setores da indústria, possa ser pega de assalto por um debate que, se está atrasado em 2022, é melhor do que nunca ter acontecido. Se Tudo É Possível deveria ter sido feito em 2002, precisamos perspectivar que é melhor hoje do que esperarmos mais 20 anos. As gerações imediatas precisam de seus ídolos, de seus reflexos, e eu cresci sem encontrar gays no audiovisual que não atentassem a níveis diferentes de caricatice e histrionismo, mesmo quando eram dramáticos. O que está em cartaz na Amazon desde hoje é algo tão refrescante e caloroso, seu elenco é tão acertado e suas conclusões são tão reais, que é preciso que o aplauso não seja abafado por uma cobrança que deve ser feita, mas que aqui exala carinho e consideração.
Um grande momento
O diálogo no pós-quase-sexo