- Gênero: Drama
- Direção: Claudia Saint-Luce
- Roteiro: Claudia Saint-Luce
- Elenco: Diego Armanda Lara Lagunes
- Duração: 70 minutos
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Essa é a segunda vez que estou escrevendo sobre Neimar, o protagonista de El Reino de Dios. A sorte é que Neimar e seu filme são fontes de inspiração para alguns textos, tal é o fascínio que obra e personagem exalam e reverberam. Parte disso é disponibilizado pelo nosso olhar já na direção de seu título. Quantas significações cabem no reino de Deus? A diretora Claudia Saint-Luce parte de um dispositivo que, aparentemente seria o esperado, para fazer um estudo de personagem através de sua relação entre o divino e o mundano, e do tanto que cada um desses dois elementos é moldado e reconstruído para a formação narrativa. É o início e o fim de tudo, representados a cada novo plano – e isso é englobado por muitas camadas.
Saint-Luce quer seguir seu protagonista, criar uma moldura para falar de muitos recortes de fé, e com isso também garantir a representação da geografia daquele lugar. Neimar não é apenas um corpo filmado, ele é uma criança descobrindo coisas e se adequando a um mundo de possibilidades. A diretora filma O Homem e o Espaço, o Homem e seus Laços, o Homem e a Natureza, o Homem e a Fé; ainda que esse “homem” mal tenha completado 10 anos. A intenção da cineasta em El Reino de Dios é criar essa simbiose entre o que vemos e o que quer tratar em símbolos, montando esse mosaico em cima de uma ideia clássica de signos, para que seu protagonista possa descortinar cada um desses elementos com uma referida anarquia.
Como um suporte estético que pudesse se assemelhar a uma estética ‘dardenniana’, com a câmera constantemente seguindo seu protagonista, El Reino de Dios se apropria de outro olhar cinematográfico para extrair sua verdade da imagem. É a presença de Neimar que muda o rumo da ambientação esperada; dentro do que era imaginado como sacro, o jovem personagem retira as certezas. Seu corpo se debate contra o que é estabelecido enquanto regra – o cenário é virado de ponta cabeça pela presença de suas questões. É de seu olhar que sai o julgamento necessário para tirar das possíveis convenções filmadas essa aura envelhecida; Neimar, com sua figura debochada, desestabiliza o ‘status quo’ social, e remove o sossego do que já conhecemos.
O que impressiona particularmente em El Reino de Dios é que não se trata de uma visão documental sobre algo, e sim uma ficção assumida, com traços de interpretação marcados por uma pincelada forte de futuro. Diego Armando Lara Lagunes é daqueles acontecimentos que não vemos todos os dias, sua entrega e seu carisma são tão absurdos, que ficamos sem compreender o que foi conseguido em cena. Parte de sua compreensão daquele personagem o que os motes seguintes passarão a comunicar com o espectador, mais precisamente a ideia de passado e futuro, atraso e modernidade, morte e vida. Neimar é uma ponte para algo que ainda não há definição, mas que já entendemos que compreende o novo. Seu passeio em cena decreta o fim de todas as coisas estabelecidas, para propor um painel de renovação da realidade.
Por outros meandros, Saint-Luce insere seus elementos naturalistas em cena, e abre mão de uma tradição da fantasia explícita, que geralmente cerca as narrativas latino-americanas, principalmente essas ancoradas em personagens infantis. Com sua aparente despretensão e um olhar limpo acerca das coisas que o cerca, Neimar retira de El Reino de Dios a necessidade de uma leveza que se vista frontalmente. Essa carga é conseguida pela forma disruptiva com que o personagem lida com essa mesma crueza prostrada á sua frente, desde a cataquese que ele tenta perfurar (“ainda não senti a presença divina, padre”) até a ligação absolutamente democrática que tem com a avó, onde ambos estão unidos pelo mesmo estado de espírito.
É como se esse lugar do sagrado estivesse constantemente sendo penetrado por um profano muito sutil, e delicado. El Reino de Dios se materializa também na busca por uma fé em algo que não se sabe muito bem de onde vem, e não necessariamente na crença por algo superior. Está na desconstrução da morte como elemento definitivo e trágico, palco de uma cena absurda protagonizada por Neimar e sua melhor amiga a bordo de um avião. Não estamos sozinhos no mundo, e por isso precisamos transformar esse tanto de mundo em algo habitável e com códigos que signifique algo para nós. A nossa cara, que também possa ser chamada de um novo olhar para o futuro, sem dogmas arcaicos.
Um grande momento
O avião