Crítica | FestivalCríticas

Guapo’y

Pedra, flor e espinho

(Guapo'y, PAR, ARG, CAT, 2022)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Sofía Paoli Thorne
  • Roteiro: Sofía Paoli Thorne
  • Duração: 70 minutos

Muitas histórias sobre a ditadura da América Latina já foram contadas, no coletivo e no individual. Hoje, esses relatos particulares estão sendo cada vez mais ouvidos, e o de Celsa Ramírez Rodas é um desses casos especiais pouco reverberados fora de seu país de origem. Guapo’y está na competição do Cine BH 2023 e é mais um dos títulos que trazem a temática do festival (‘Territórios da Latinidade’) impressa tão fortemente que essa passa a ser também um comentário extra. No centro da ação, está nosso próprio desenvolvimento do olhar, para acompanhar cada linha de ação da protagonista, uma mulher torturada da ditadura de Alfredo Stroessner, da qual criamos uma intimidade delicada a partir dessas imagens capturadas. 

Sofía Paoli Thorne está no comando dessa captura, dedicando sua lente a afagar as feridas da alma dessa figura marcada pela violência, mas que não se resume a isso. É sintomático inclusive que seu debruçamento hoje chegue até a promessas de cura que faz a si mesmo, em silêncio. Guapo’y parte dos testemunhos dessa mulher, mas também do elixir vital que ela desenvolveu para estar de pé, em torno de um universo botânico que hoje também lhe habita. O corpo dessa mulher, como já demonstra sua cena de abertura, se transformou em uma extensão das raízes que cultiva e trata de maneira tão respeitosa; a resposta a essa dedicação é o quanto sua pele e a tal medicina alternativa que elas representam se tornaram um só elemento. 

Não é à toa o momento onde o título do filme se faz presente. O guapo’y é uma árvore centenária, que significa figueira em guarani, e era o símbolo do lugar onde Celsa e suas companheiras ficaram presas. Anos depois, essa árvore foi ceifada pelos militares, e esse símbolo é sentido em Guapo’y, quando sua protagonista revela tais acordos tácitos que são quebrados pelo Poder, afim de derrubar ideais. Que após todo seu sofrimento, a guerrilheira tenha absorvido pra si os ensinamentos que recebeu, de alguma maneira, dessa estrutura viva e se dedique a semear ainda os elixires que por tanto tempo recebeu, o filme exacerba as entrelinhas. É como uma mãe que desenvolve na filha os conselhos corretos, e acaba se tornando um prolongamento da mesma. 

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Ao longo de Guapo’y, Thorne deixa claro que os ecos da época continuam respingando na vida real. A extrema direita continua elogiando monstros assassinos e isso não se restringe ao Brasil, e o noticiário local mostra que esse fenômeno do mal ainda não se esgotou. Eles não afetam a realidade da personagem central hoje, mas são um lembrete óbvio de que aquele sofrimento precisa sim ser realocado mais uma vez na pauta do dia. O que adiantou para figuras como Celsa todo o horror passado, se mais uma vez ele pode ser revivido no nosso tempo, em continuidade a algo que já deveria ser estabelecido como criminoso. Os relatos de uma mulher fascinante como essa falam pela História, e o momento onde ela repassa a descoberta da verdade sobre o paradeiro do marido é um dos pontos altos da produção. 

Assim como o corpo de Celsa, sua casa também é gradativamente pressionada por um eu lírico da natureza. Estão ambos, corpo e casa, se apossando do que o guapo’y lhes legou, e recriando suas tessituras a partir de um caráter significativo de que a História pode e deve sobreviver. O ato de curar deve vir como um referencial a gerações futuras a respeito do que lhes é outorgado hoje, com as ideias brotando novamente para o melhor. Guapo’y, a despeito de nos fazer conhecer a história de Celsa e de nos reconectar com um recorte do eterno horror, também se mostra uma fonte inesgotável e renovável de conexão entre a energia que fica e a energia que precisamos expurgar. 

Um grande momento

As contradições da memória entre Celsa e sua mãe

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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