Crítica | FestivalCríticas

Inutensílios

O outro no espelho

(Inutensílios, BRA, 2024)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Bruno Jorge
  • Roteiro: Bruno Jorge
  • Duração: 70 minutos

Bruno Jorge ganhou, com muita justiça, o Festival de Brasília 2022 com A Invenção do Outro, que está prestes a finalmente ser lançado no circuito. É com muito entusiasmo que observamos seu material coletivo filmográfico, e silenciosamente, parece nascer um documentarista provocador, que não cessa sua busca por respostas, nos mais recônditos lugares – cênicos ou não. No É Tudo Verdade 2024, Inutensílios chama a atenção pela coragem de seu realizador em não esconder sua falta de ciência a respeito do que está realizando. Suas ideias não são claras, seu off é tão verdadeiro nessa inadequação de material que o ímpeto é olhar para ele e para suas imagens, e não tentar respondê-las. A cada vez que o espectador parece se cercar de algo que pareçam caminhos, Jorge volta a nos cutucar e ainda dizer que não é bem aquilo; o aquilo é um quebra-cabeça, que diretor e espectador provavelmente descobrirão juntos. 

A ideia era se mudar para a Serra da Mantiqueira, e lá, como ele diz, “fazer filhos e filmes” com a calma e o desprendimento temporal (em curto e longo prazo) que uma capital não permite sequer cogitar. Porém nada é concreto o suficiente que demande um fiapo de ideia, uma conexão ou um sopro imaginativo; estamos diante do processo de entender que filmes são coisas, e enquanto tais, seu espaço de entendimento no mundo não somente é subjetivo, como ilusório. A produção dessas imagens, a captura de seus personagens, não são as imagens ou os personagens, mas uma reprodução delas, portanto coisas. Inutensílios, como o título já diz, se interessa pelo que não tem qualquer utilidade – daí para identificar cada um em cena como algo vazio e descartável, suas existências reles e examinar o tamanho dos seres em meio ao todo, é um pulo. O filme apenas é um trampolim de ideias esfumaçadas; todo o resto parte do espectador, assim como Jorge. 

Quanto mais tenta encontrar um propósito no que filma, nas pessoas que encontra, uma conexão entre as imagens e suas inquietações, e faz projeções abstratas em relação aos personagens animados e inanimados, mais Jorge revela sua condição. Sem abranger qualquer aspecto negativo particular, o que Inutensílios expõe é a própria estrutura ruidosa de seu verdadeiro protagonista. Enquanto se conecta empaticamente a uma vizinha que se retirou do convívio, ou olha para um recém ordenado presbítero – ou seja, um homem que está de partida da realidade mundana, ou se interessa por um homem que se esconde no que faz e na própria identidade, o diretor não percebe que as máscaras de seus tipos os ligam a ele, um homem que também escolheu o distanciamento antes da palavra ganhar contornos trágicos. 

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Na verbalização que o validaria na primeira parte do filme, “fazer filhos e filmes” parece, ao longo da projeção de Inutensílios, uma cortina de fumaça. Jorge estava mais envolto em seus pequenos demônios do que poderia supor, e seus passos, ao longo dos 70 minutos da produção, nos carregam de um extremo a outro até um homem que se racha. Em muitos sentidos, é revelador que em 2016 o cineasta tenha lançado na Mostra Tiradentes um filme chamado O Que Eu Poderia Ser Se Eu Fosse, assumidamente biográfico, desnudando a primeira gravidez de sua esposa, a fotógrafa Fernanda Preto. Ao espelhar esse filme ao novo, oito anos e dois filhos nascidos depois, Jorge cria um arco a respeito da falência do que poderíamos ser se fôssemos, ironicamente. 

É lógico que, há 10 anos atrás, Bruno Jorge não fazia ideia de seu percurso; não estamos diante de um projeto de cinematografia para um desnudamento muito pessoal. Mas o Cinema se impõe ao fim de Inutensílios, quando a imagem revelada nem é de Fátima, nem é a do Papai Noel da cidade, nem do apicultor que também é goleiro. São os seus muitos documentos de identidade que estão no material imagético do filme no festival, é o seu rosto (que mal aparece, apenas nos minutos finais) que é o principal esconderijo de sua narração em off. É a sua corajosa capacidade de assumir seu desconhecimento sobre si que vai se revelando, aos poucos; seus filhos tentam fazer isso por ele. Através de um homem embrenhado no Outro, que vê tantas imagens para deixar de ver o seu próprio reflexo, é que se amplia o fascinante mergulho no desconhecido, que somos nós. 

Um grande momento

Bruno e Fernanda passeiam com os filhos

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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