Hoje é o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida

Bel Bechara e Sandro Serpa são cineastas, dirigiram juntos filmes como Onde Quer Que Você Esteja, e têm um passeio entre a ficção e o documentário muito saudável dentro do nosso cinema. Bel e Sandro são um casal, que dividem com o espectador sua dinâmica que se pretende familiar, a partir de 2021. Nesta edição do É Tudo Verdade 2024, eles lançam Hoje é o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida, a forma cinematográfica que eles encontraram para desaguar o tanto de amor que os invadiu nos últimos três anos. Se é através do afeto que o filme se configura, não é apenas dele que é feito; aos poucos, surgem da produção as inquietações de seus protagonistas e o quadro de elementos que constituem o todo, vem à tona. 

Acima de tudo, Hoje é o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida exala sinceridade por todos os lados, até mesmo quando algum exagero transborda do material. Bel e Sandro (e, após o filme, é quase impossível nos dirigirmos a eles de maneira formal; a invasão ao seu lado mais íntimo é total) estão entregues à cena desde o primeiro plano, e o quadro se aguça cada vez mais. Sua casa vazia de uma constituição familiar tradicional, é repleta de coisas imateriais que os emolduram, mas não os completa. Na abertura, estamos no segundo ano da pandemia, período onde a carência já tinha explodido na maior parte das casas ao redor do mundo. Eles então recebem a notícia que a fila de adoção onde estão acaba de chegar em sua vez, ou seja, um bebê de 4 meses está apto a receber suas visitas e é o candidato natural para adoção. 

É muito prazeroso assistir a todos os processos pelo qual Bel e Sandro passam enquanto novos pais, mas ainda é mais revelador o quão estão conectados como indivíduos ao mundo que os cerca. Se Hoje é o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida é cercado dos mistérios e do maravilhamento que é a chegada de uma nova vida em momento onde a desesperança mais batia no país em sua História recente, não falta consciência ao casal. São relatos de ordem prática sem qualquer embelezamento acerca do que irão enfrentar, e do quanto esse mundo novo é admirável mas também assustador, e sem os meses de preparo que uma gravidez estimula. Eles se entendem como inexperientes e expõe isso, sem qualquer firula; e pensando nos planos familiares, de que isso também seja um documento futuro para o conhecimento pessoal de Gael, o filme soa ainda mais honesto. 

Se emocionalmente a exposição dos cineastas revela sua humanidade e sua vontade de viver e de doar amor, o que Hoje é o Primeiro Dia do Resto de Sua Vida oferece enquanto cinema é apenas essa sensação instigante da descoberta por um novo olhar, entre seus personagens demasiadamente humanos, nos acertos e nos erros. Uma pincelada generosa pela formação de um novo quadro familiar em tempos de ódio, de proliferação de falsidade e da absoluta falta de empatia, invadir uma casa e tornar-se cúmplice do início de uma criação, é no mínimo um estudo antropológico do nosso tempo. Que o filme não encontre saídas tradicionais do cinema, e brinque com isso (a cena do desdobramento de um possível roteiro dentro da história deles é cheia de charme), só mostra como o essencial nas imagens era o excesso de sentimentos. 

Não há muita firula no que é apresentado, até porque trata-se de um projeto extremamente pessoal, que em tese poderia ter se transformado “apenas” em um conto familiar. Como a maior parte das decisões, existe coragem também de observar esse ‘filme para amigos e família’ (como eles mesmo declaram) em uma produção que pode sim tocar mais do que sua própria aldeia. É nesse lugar que Hoje é o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida encontraria respaldo, por exemplo, na afetuosidade com que Pedro Diógenes olha para seus personagens em A Filha do Palhaço, ou no conceito familiar que André Novais Oliveira desdobra em seus longas. Sem deixar de conjecturar sobre as causas do que os levaram até Gael – e Bel, pra mim, é a segunda mulher mais corajosa do cinema brasileiro hoje, atrás apenas de Eliza Capai – o casal nos pede para abraçá-los, e só; nós fazemos isso.

Apesar do que falei a respeito de Hoje é o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida ser um filme do seu tempo, a verdade é que Bel e Sandro estão muito mais interessados em criar uma história bonita para Gael conhecer no futuro do que falar sobre “aquele que não deve ser nomeado”, e governou nosso país durante a pandemia. Então, estão lá sim, o horror e o alívio de 2022, quando voltamos a ser comandados por alguém que não reduz uma doença que dizimou milhares a uma gripezinha, está lá sim a própria ameaça da doença, mas acima de tudo está Gael, Sandro, Bel e Miguelim, os protagonistas dessa história, formando um núcleo familiar do qual gostaríamos de continuar acompanhando por anos afora, no formato que fosse. 

Um grande momento

O primeiro encontro de Gael e Miguelim / A despedida de Renata