- Gênero: Terror, Drama
- Direção: Davi Pretto
- Roteiro: Davi Pretto, Igor Verde, Paola Wink
- Elenco: Olívia Torres, Ana Flávia Cavalcanti, Corentin Fila, Breno de Filippo, Silvia Duarte, Sirmar Antunes, Marcio Reolon, Cássio Nascimento, Mário José Paz
- Duração: 115 minutos
-
Veja online:
Filmes de retorno para casa de um filho pródigo são um prato cheio para gerar horror. Afinal, a atmosfera que foi transformada, os lugares que se transmutaram, uma nova concepção de realidade onde as personagens não reconhecem mais o que um dia foi natural, estão dispostas. A pouco tempo tivemos Fogaréu (que ainda não estreou) e mês que vem estreia A Herança, em demonstração de como a narrativa bem desenvolvida para Continente é comum. Isso não invalida o que é construído, para o cinema de gênero em particular, onde o trabalho imagético tem uma importância considerável. O filme, que acaba de ganhar o prêmio de melhor direção no Festival do Rio, vai além disso ao compor um painel sobre os meandros do poder no interior do Brasil, onde o coronelismo ainda é a porta de entrada para compreender as contradições e horrores (não audiovisuais) do país.
Davi Pretto (de Rifle) é um cineasta nascido em Porto Alegre, e que reproduz na tela muitos dos discursos nascidos há séculos atrás, e que ainda se fazem valer em localidades mais incrustadas no Brasil. O ato de herdar uma terra e manter uma história de reprodução de linhagem escravocrata não é uma realidade para a maior parte dos brasileiros, mas todos conseguem acessar esse ambiente justamente por como a arte já contou tais verdades pouco discretas, e ainda pulsantes. Filmes como Propriedade são também uma forma de mostrar que tais registros históricos precisam ser revistos, e Continente leva para o coração do fantástico tudo o que essas narrativas tentaram organizar em matéria de registro discursivo.
Os símbolos são claros: a herdeira brasileira volta de uma temporada estrangeira para o breve desencarnar de seu pai, o senhor de engenho do passado. A tiracolo, ela trás o forasteiro colonizador, que passa de caçador a presa até retornar à posição inicial, em jogo de contras e reflexos que se justapõem a todo momento. Nesse sentido, Continente revela não apenas uma tradição do Cinema em recriar aspectos sociais vigentes na atualidade, como em encontrar nesse espaço uma comunicação temporal ininterrupta, como um moto perpétuo de eventos que nunca deixam de perpetuar violências. Esse desenvolvimento é obtido através de um olhar que ressignifica seus valores para o encontro com a atualidade.
Está concatenado de maneira gradual esse encontro entre os cinemas de denúncia e o horror político, que explode de maneira surpreendente, para quem não percebe tal onda se formando. De princípio uma certa facilidade de leitura de discurso, aos poucos os elementos imagéticos começam a compor um quadro de gênero, que eleva seu material. Continente não tenta surpreender com a premissa, mas com o minucioso desdobramento da mesma, onde vemos o quadro geral se apresentar de maneira pouco esperada, em um convite à descoberta. Sem que possamos nos preparar, o filme sai de uma zona conhecida e confortável, ainda que pungente, para montar um painel explícito em sua fúria derramada, pelas frestas e pelas ruas.
Entra em cena uma selvageria que é, a um só tempo, comum pela repetição, mas também uma revelação de caos ao espectador. Como se estivéssemos olhando pelo buraco de uma fechadura muito antiga e normatizada, o que vemos é um processo que precisa ser extinto, mas cujo conforto já foi estabelecido. Isso está impresso na personagem de Ana Flávia Cavalcanti, que luta para reconfigurar sua região, ao mesmo em que necessita desse status quo sangrento. Através dessa personagem, Continente mostra os muitos lados de uma moeda complexa para assimilação, em que a necessidade de cessar o horror é tão forte e óbvia, quanto o cotidiano de cada massacre, que precisa da vontade (e da luta) de todos para cessar.
Através dessa dubiedade, Continente tem a coragem de mostrar o conforto do horror sob o qual estamos submetidos todos os dias, e que insiste em nos tornar refém de uma situação onde, muitas vezes, depende também de nossa vontade para se extinguir. Criando camadas para o que seria inaceitável, Pretto coloca o dedo em uma ferida muito polêmica: como o indivíduo se acostuma com o que lhe tolhe, e como o algoz do passado pode vir a ser o principal agente de mudanças de hoje. Não é algo fácil de montar, é um quadro onde apontar os riscos morais do discurso são enormes, e seu autor se banha com bravura em sua coragem.
Um grande momento
Helô e Martin se afinam no risco