Crítica | CinemaDestaque

Nosferatu

Água e vinho

(Nosferatu , EUA, RUN, HUN, 2024)
Nota  
  • Gênero: Terror
  • Direção: Robert Eggers
  • Roteiro: Robert Eggers
  • Elenco: Bill Skarsgard, Lily-Rose Depp, Nicholas Hoult, Willem Dafoe, Ralph Ineson, Aaron Taylor Johnson, Emma Corrin
  • Duração: 130 minutos

A estranheza que perpassa propositalmente a filmografia de Robert Eggers atinge um lugar curioso em Nosferatu, escolha inusitada sua para nova produção. Isso porque mesmo que sua obra anterior seja absolutamente referenciada, ainda não tínhamos percebido a vontade do diretor em adentrar obras que provavelmente formaram seu caráter e sua cinefilia; a próxima, aparentemente, será Labirinto: A Magia do Tempo. O desencontrado aqui advém também da forma como o diretor parece procurar seu espectador com um carinho ainda não visto anteriormente, sendo ele um profissional sempre tão circunscrito em sua criação. Dessa vez, Eggers não apenas se volta ao público, como parece convidá-lo a dançar, ainda que à sua maneira. 

No cômputo geral, isso demonstra uma preocupação clara do cineasta com sua obra, com a aceitação da mesma, mas igualmente com a forma como ela é recebida além do público final, levando em consideração que seus orçamento estão inflando e suas demandas estão se tornando mais complexas. O que se move, a partir desse desejo de conexão, é um demorado processo do autor em entender seus limites e transitar de maneira tranquila entre as suas necessidades, e entre infinitas exigências que não cabem a ele. Assim sendo, tentando parecer mais afável com sua obra, Nosferatu se torna um híbrido deformado entre uma produção autoral e independente, e um produto com apontamentos que precisam ser feitos para além de seu desejo. 

A parceria entre ele e o fotógrafo Jarin Blaschke (indicado ao Oscar por O Farol), por exemplo, é testada aqui. O tratamento geralmente estático dos dois filmes inaugurais, já tinha sido modificado em O Homem do Norte, mas espantosamente está ainda mais fluido aqui. Eggers parece compreender que tanto ele quanto a experiência original de assistir Nosferatu não é exatamente de fácil acesso, e com isso vemos um filme que consegue livrar-se do quadro tradicional, para honrar o movimento de câmera, a luz exasperante e as panorâmicas reveladoras. Essa é uma clara tentativa do diretor em não aprisionar o público em algo de observação hermética; o resultado é um filme que consegue inebriar com a decupagem. 

Ao longo dessa tentativa válida, essa ruptura entre sua verve poética e o conteúdo pop gótico que cria ser perceptível, tende a mostrar além do que precisava um certo desacerto entre tais vontades. Além disso, Nosferatu também deseja comunicar-se com a contemporaneidade, o que em tese é a coisa certa a ser feita, mas essa é mais uma escolha que o filme banca o risco, e o resultado também é híbrido. Essa história mais do que conhecida, não apenas pelas adaptações anteriores como pelo lugar comum que acompanhava tais narrativas, é apresentada com o máximo em requinte, mas cujo carisma trafega aqui de maneira claudicante. Os acertos da produção significam demais para o resultado final, mas não apagam o que está descalibrado.

Os acertos, além da fotografia meticulosa, estão na generalização dos valores de produção. Nosferatu é um filme bonito de ser assistido. Talvez excessivamente até, mas é essa suntuosidade que nos conecta ao que é mostrado, muito mais do que as camadas que ele tenta acrescentar ao material. Elas existem, estão lá, mas sua porção imagética é a que a todo momento se sobrepõe ao material coletivo. E também é ele que varre as chances do filme se arvorar para equiparar-se, ainda que de longe, às versões de Murnau e Herzog. O que a temporalidade do hoje trouxe mostra que apenas os cuidados de Blaschke se mostram eficazes na tentativa de renovar sua mensagem. 

Por trás das imagens, existe um filme que tem uma pulsão de conversar sobre a disputa ancestral dos gêneros, masculino e feminino, e receber desse lugar uma resposta saudável. Mas estamos em 2025 e acho no mínimo incômodo o que seja condicionado aqui a partir de determinado momento, que o filme quer atribuir como glorioso – a partir de homens, lógico – mas que nada tem de heroico. É, ao contrário disso, uma fonte altamente problematizável que o filme não se importa em abraçar, e nesse sentido é sempre bom parabenizar a coragem de se mostrar sua face mais misógina. Diferente de Men, no entanto, Eggers pretende mesmo fazer de sua protagonista uma senhora de suas próprias escolhas, sejam elas positivas ou não.

O elenco não ajuda (Lily-Rose Depp não muda a frequência única, Bill Skarsgard está escondido o tempo inteiro – e era melhor ter continuado, já que não há carisma, só antipatia; sua caracterização é, na falta de uma expressão mais polida, apenas ruim), e Eggers não estava em bons dias enquanto dialoguista. Willem Dafoe, em especial, precisa proferir falas constrangedoras com naturalidade, e isso não consegue acontecer. A presença sempre discreta do ator fetiche do diretor, Ralph Ineson, é uma lembrança dos lugares onde esse grupo poderia chegar, e que efetivamente não produz muitas fagulhas durante toda a projeção. Aaron Taylor Johnson também está bem, mas no caso dele o problema é a falta de dimensão de seu tipo, que nos provoca séria vontade de desistir do todo. 

Na falta de opção entre onde se agarrar para manter um campo de admiração pela obra de um artista, prefiro abraçar o entretenimento proveniente de Nosferatu. É uma escolha deliberada em absorver o tanto do esteticamente belo que está em cena, em seu grafismo texturizado para ambientar essa fábula gótica pop. Todas as muitas tentativas de complexificar (ou adensar) o trabalho de seu autor, me soam como vãs tentativas de alcançar um espaço que o filme não encampa por completo justamente porque tem interesse em mais de um propósito. Quando esquecemos o que poderia embasar emocionalmente a obra, e deixamos todas as cobranças de lado, aí sim o filme se eleva – até a metade da estatura, no máximo.

Um grande momento
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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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