Crítica | CinemaDestaque

Misericórdia

(Miséricorde, FRA, ESP, POR, 2024)
Nota  
  • Gênero: Comédia
  • Direção: Alain Guiraudie
  • Roteiro: Alain Guiraudie
  • Elenco: Félix Kysyl, Catherine Frot, Jacques Develay, Jean-Baptiste Durand, David Ayala, Sébastien Faglain, Salomé Lopes, Tatiana Spivakova, Elio Lunetta
  • Duração: 102 minutos

Em silêncio, somos levados a um pequeno vilarejo no interior da Franca. É um lugar daqueles onde todos parecem se conhecer de alguma forma. A história de Misericórdia é a de Jérémie, que volta à cidadezinha depois de anos morando em Paris para o enterro de Jean-Pierre, o padeiro, com quem havia trabalhado na adolescência. A viúva, Martine, está feliz em vê-lo e o convida para ficar em sua casa. Vincent, filho de Martine, se sente desconfortável com a presença do antigo amigo de infância. Diferentemente de Walter, que excluído quando novo, agora começa a receber muita atenção do forasteiro. E ainda tem o padre Philippe, agora mais presente do que nunca, sempre cercando Jérémie. Ciúmes, desejos reprimidos, segredos e preconceitos fazem parte de relações interrompidas ou experienciadas apenas no campo da imaginação. 

O diretor Alain Guiraudie sabe como tratar esses temas e é habilidoso na criação e manutenção da tensão. Uma tensão presente em todo o filme, que vai se transformando. Está no que há de cômico com uma conotação e ganha novos contornos quando o suspense se estabelece depois que uma das cordas chega ao seu máximo. Mas são muitas as cordas e tantas as coisas que se querem iguais ou, melhor, mudanças recentes que se querem manter. O estabelecido, com um humor ácido peculiar e delicioso, joga – comparando – o crime, o tesão e a privação, e chega tão longe que alcança a hipocrisia católica.

Para além do desejo e da frustração, facilmente identificáveis, não há em Misericórdia aquele interesse em seguir padrões rígidos seja em contexto ou em forma. Obviamente, percebem-se as influências, mas as cores exageradas e o nonsense das situações, em especial da investigação criminal, afastam-no daquilo que é habitual. Ao contrário da pequena cidade e seus habitantes, o longa tem a liberdade de brincar sem passar do ponto. O maior acerto de Guiraudie aqui é transformar a forma em conteúdo, porque aquele que chega e transforma é também, de alguma maneira, isso que se descreve. Ainda que apegado a convenções e estilos de vida, carrega consigo a mudança e a transformação para aquele lugar e aquelas pessoas.

A misericórdia, o último ato para com com todos ali, está na chegada daquilo que mudou e no fim metafórico de um passado que não só tolhe, condena e persegue como deixa de se assumir e viver. Está na reação de uma cidade que, após o impensável, se sente livre para descobrir e viver. É tudo inacreditável e absurdo, mas faz muito sentido com o distanciamento de quem acompanha a trama rindo a cada reviravolta, envolvido com os personagens construídos por um elenco dedicado. Nele estão a sempre ótima Catherine Frot, Jacques Jacque Develay, Félix Krysyl, David Ayala e Jean-Baptiste Durand. Guiraudie faz outra vez, de forma ainda mais elaborada e precisa, agora permanecendo por mais tempo.

Um grande momento
O padre e a polícia

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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