Crítica | Festival

Quemadura china

Reaprender a andar sozinho

(Quemadura china, URU, BRA, 2025)
Nota  
  • Gênero: Comédia
  • Direção: Verónica Perrotta
  • Roteiro: Verónica Perrotta
  • Elenco: Verónica Perrotta, César Troncoso, Néstor Guzzini, Monina Bonelli
  • Duração: 76 minutos

O amor romântico cria amarras que não se veem. Em Quemadura china, Verónica Perrotta transforma a ideia dos gêmeos siameses em figura de afeto que precisa aprender a se separar para continuar. A história nasce de sua peça homônima, reescrita para o cinema, e acompanha Annie e Dani diante de uma cirurgia que é tanto corte físico quanto gesto existencial. Há ainda o irmão Willie, médico e cúmplice, que, vítima da idealização, confessa o desejo de costurar a si mesmo, como se a proximidade fosse o único modo de sobreviver. A metáfora é direta e toca fundo porque fala de codependência, de relações que confundem cuidado com fusão, de vínculos que deixam de ser abrigo e viram prisão.

O filme se arma como uma comédia estranha e pessoal. O humor nunca suaviza a dor do corte, mas permite aproximar o espectador de um absurdo que é extremamente humano. O espaço físico que ameaça ruir funciona como fantasia e aviso, porque o abrigo que sustenta a família também pode desabar a qualquer momento, e essa sensação de instabilidade transforma o cotidiano em instabilidade. Perrotta dirige e atua ao lado da dupla Néstor Guzzini e César Troncoso, dando vida ao impasse nessa farsa leve abre espaço para um luto atravessado pelo desejo de pertencimento.

Metalinguisticamente, há um jogo entre ficção e bastidor. E é funcional o modo como a diretora leva ao cinema a experiência da peça, mantendo a organicidade dos ensaios e dos corpos, deixando que o processo conviva com a narrativa. Sem deixar de ser teatro e sem deixar de ser cinema também. Isso explica a liberdade de tom e a maneira como a fantasia invade a cena, como se o set contaminasse os personagens e o roteiro abrisse brechas para a memória e o afeto. A aposta não é no realismo polido, é na vibração do encontro, e o filme acha um lugar próprio nesse entrelugar de invenção e confissão.

O tema central é a separação, e separar não é negar a história comum, é encontrar respiro fora dela. A ideia dos siameses faz ver o que muitas vezes se esconde em relações românticas ou familiares, quando a troca vira simbiose e o medo de perder o outro impede qualquer tentativa de autonomia. A cirurgia, então, vira rito de passagem, e o fato de Willie querer costurar-se a um dos irmãos escancara o desejo de adesão total que seduz e sufoca ao mesmo tempo. Entre o vivenciado e o imaginário, é aí que Quemadura china transforma uma invenção fantástica em experiência reconhecível de quem já precisou recomeçar depois de um amor por demais simbiótico.

“Constatar o Insuportável: esse grito  serve para alguma coisa: ao me significar que é preciso sair disso, de qualquer maneira, instalo em mim o teatro marcial da Decisão, da Ação, da Saída.”
Roland Barthes. Fragmentos de um Discurso Amoroso.

Formalmente, o longa se permite ser lúdico e pouco ortodoxo. O tom escorrega do patético terno para a vibração de um teatro filmado que aceita a própria fábula. E se apropria da linguagem ao colar nos corpos como tradução da dificuldade de deixar ir para que se volte a viver. Quando a locação range e treme, quando o texto se dobra sobre si, quando a mise-en-scène brinca com o colapso, Quemadura china sugere que o mundo que abrigou a fusão não consegue mais sustentar aquela configuração. Perrota cria uma comédia muito pessoal que explora duelos e vínculos enquantro pensa o ato de filmar, reforçando a sensação de que ela encontrou uma voz que ri do que dói sem diminuir a dor.

Se em alguns momentos a repetição do vaivém cênico se alonga mais do que precisa, a imagem fica. Separar é abrir ferida, mas também é recuperar limite e autonomia. Quando os corpos deixam de ser um só, resta aprender o passo de quem caminha com as próprias pernas. Quemadura china abraça a contradição e a molda como fábula íntima, onde a comédia aproxima e a fantasia dá forma ao que não se traduz. É um filme sobre se livrar com cuidado, sobre aceitar que o amor não precisa costurar para existir, e sobre a coragem de recomeçar depois do corte.

Um grande momento
Grupo de apoio

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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