Crítica | Festival

Lidando com os Mortos

Formas incompletas de presença

(Håndtering av Udøde, NOR, 2024)
Nota  
  • Gênero: Terror
  • Direção: Thea Hvistendahl
  • Roteiro: Thea Hvistendahl
  • Elenco: Anders Danielsen Lie, Renate Reinsve, Bjørn Sundquist, Bente Børsum
  • Duração: 97 minutos

A ausência às vezes se revela em fôlego suspenso, em um corpo que permanece imóvel enquanto o mundo continua a girar. Em Lidando com os Mortos, Thea Hvistendahl imprime uma aura densa para dialogar com o luto muito além da tragédia visível. Quando os mortos retornam em Oslo, não voltam completos, não voltam falando; voltam como vestígios, sombras que ocupam espaço e lembrança.

A primeira metade do longa se sustenta no silêncio e na espera. Oa planos estáticos devolvem ao espectador a sensação de olhar através de uma lente que pesa. A câmera se retira, observa de longe, não persegue explicações, permitindo que o espaço se encha de tensão. Quando Anna, que perdeu o filho, encontra seu corpo ressuscitado, o que importa não é o choque do estranhamento, mas o peso do semissilêncio entre o gesto de tocar e o olhar que não reconhece. A materialidade dos corpos mortos — olhares fixos, gestos rígidos, decomposição lenta — ecoa o que o luto carrega de desordem interna.

Há, no modo como Hvistendahl organiza os três núcleos de Lidando com os Mortos, uma simetria de dor e de suspensão. Nenhuma linha aparece como dominante. Não há construção clara de protagonista, mas um tecido coletivo de ausências. Esse entrelaçamento reforça a noção de que o luto não é singular, se multiplica e se fragmenta. O retorno dos mortos funciona como mise-en-scène para explorar quanto do peso do que se foi permanece dentro de nós e quanto se dissolve em formas incompletas de presença.

Na transição para o terceiro ato, porém, o filme vacila e a trama se enfraquece quando parece acelerar para fechar sentidos. O plano fixo perde protagonismo; a construção simbólica se rende a exigências de narrativa, exigindo respostas para o mistério; e os gestos querem destino. A ambiguidade que sustentava o incômodo começa a desfiar. O que poderia permanecer aberto se empareda por articulações que exigem coerência onde, até ali, o filme corajosamente definia não haver lei.

Mesmo assim, Lidando com os Mortos guarda momentos potentes. No rosto pálido de Anna, andando pela casa vazia; no som que parece vindo de outras camadas; no modo como o filme recusa a catarse. A estética não disfarça a ferida, apenas insiste que ela resista. Aos que já perderam, restam essas imagens que não fecham, que insistem no estranhamento dos corpos que estão entre um mundo e outro.

O que fica, depois, é um eco: nenhum retorno consome o luto por completo. Os mortos que voltam não traem a morte, só a expandem no espaço dos vivos. E o cinema, quando escolhe não colar as bordas cortadas da dor, permite que ela ocupe o quadro e se manifeste no vazio entre uma cena e outra. Lidando com os Mortos não tapa as feridas, as revela, e é nesse corte que a experiência sobrevive.

Um grande momento
Revendo Elias.

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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