Crítica | Festival

Amora

A selvageria do capitalismo contra a doçura de uma criança

(Amora, BRA, 2025)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Ana Petta
  • Roteiro: Ana Petta, Paulo Celestino
  • Duração: 75 minutos

Ana Petta viu literalmente o seu mundo ruir; na verdade, não apenas o dela, e Amora é como se fosse um misto de história muito particular, muito íntima e muito segura, com a necessidade de entender os momentos onde o privado não pode mais estar distante do restante da sociedade. Muitas das imagens vistas aqui foram alcançadas com a certeza de que aquele material era familiar e, portanto, exclusivo. A força das circunstâncias, no entanto, transformam a vida cercada de afeto da autora em um motor para discutir depredação predatória causada por especulação imobiliária – e o que era carinhoso e recôndito, passa a servir como escudo para um futuro de perdas coletivas. 

Moradora de uma pequena vila localizada na região central de São Paulo, Petta um dia foi assombrada pela chegada de uma carta de apropriação do terreno não de sua casa, mas de toda essa localidade. O motivo não precisa nem ser detalhado: algum consórcio todo poderoso tinha planos para derrubar uma história de mais de 100 anos para deixar passar por ali um desses empreendimentos que prometem luxo e segurança, e entregam gentrificação. Com extrema delicadeza, mas sem qualquer rastro de didatismo, Amora rasga através de um grito muito específico, uma situação que é apavorante na maior cidade do país, mas que está em todas as grandes metrópoles, e não apenas aqui. 

Através daquela máxima “o mundo visto pelos olhos de uma criança”, Amora vai além disso, porque encapsula Pedro em um personagem que não é apenas agente de observação. Ele participa ativamente, literalmente até o último plano, do objeto de mudança e guerrilha em torno de uma causa – mesmo tendo bem menos de 10 anos quando o processo se inicia. De muitas maneiras, não é apenas a voz e os pensamentos de Pedro que estão em cena, mas sua ação dramática e técnica, o que o tira de um lugar puramente observatório. Agente de suas próprias vontades, o protagonista do filme não aceita apenas ser filmado; com as permissões que um gênero como o documentário dá, ele toma para si o poder de contar a história. 

Para Ana e o casal de amigos que moram porta-porta com ela, toda essa situação vai além das condições fabulares que o filme adquire aqui e ali. É principalmente no olhar que a diretora lança sobre Hernan que o sentimento vem mais forte no que tange às imagens que Amora consegue. Porque não estamos falando do foco na criação de uma misé-en-scene elaborada, de um pensamento estético que pretenda revolucionar o cinema, mas na construção de uma base afetiva que é subitamente destruída pelo Estado omisso. A singeleza que é tecida a partir dessas amizades extrapolam a necessidade de um campo de imagens mais eficaz do que se tem, e que também corresponde ao plano de filmar os acontecimentos em cheque de uma forma trivial, como um filme de família caseiro. 

Ainda que se sinta a falta do compartilhamento de outros personagens igualmente citados em Amora e na ausência deliberada de informações que montassem os mosaicos familiares mostrados ali, o que se forma é uma alegoria que precisa se aproximar da doçura para falar de uma tragédia real e muda que assombra as cidades. Quanto mais parece frugal, melhor é o resultado – e talvez por isso algumas saídas soem negativamente artificiais, tais como poses em fotos. Mas o afeto extraído da preparação de uma geléia caseira está impresso em grande parte das cenas, e saímos do cinema com a certeza de que a cena de “Homem Primata” é tão surreal que só pode ser verdadeira, mesmo não parecendo. Vem também dela a sapiência do pequeno grande Pedro, que sem entender muito bem o que se passava à sua volta, entendeu absolutamente tudo. E pode crescer para ser um alguém melhor para o mundo do futuro. 

Um grande momento
“Homem Primata” e “Que C’est Triste Venise”

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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