Crítica | Festival

Vainilla

Memória que une

(Vainilla, MEX, 2025)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Mayra Hermosillo
  • Roteiro: Mayra Hermosillo
  • Elenco: Aurora Dávila, María Castellá, Natalia Plascencia, Paloma Petra, Rosy Rojas, Fernanda Baca, Lola Ochoa
  • Duração: 99 minutos

Quando as imagens chegam sem legenda e as vozes vêm marcadas pelo tempo, o que fazemos com aquilo que encontramos do passado? Vainilla parte desse gesto íntimo e teimoso de abrir caixas de família e aceitar que delas não sai algo completo, um quadro pronto. O filme é ficção, mas sua matéria vem do arquivo doméstico, do que foi guardado por cuidado ou por acaso. Longe de ser reconstituição, é uma história inventada com o que restou, e em vez de pedir ao passado que se explique, deixa que ele respire no presente, como afeto que se recusa a desaparecer.

A casa é habitada por mulheres de gerações diferentes. A ausência masculina, não é uma ferida escondida, mas uma condição de mundo. Em especial do Chile dos anos 1980. O cotidiano se organiza entre conversas, tarefas, risos e silêncios que dizem mais do que qualquer lembrança organizada. Não se busca uma verdade única sobre o que aconteceu, e sim um lugar para que as versões coexistam. O arquivo funciona como faísca e não como prova, porque a lembrança não pretende fixar nada. Ela insiste em continuar, mesmo que mude de forma a cada vez que é contada.

Roberta, a mais nova da família, é quem conduz a trama. Vivida com graça e competência por Aurora Dávila, ela circula pelos cômodos como quem aprende uma língua antiga por repetição e carinho. Não precisa entender tudo para sentir que algo está acontecendo. O corpo infantil acolhe as histórias que chegam truncadas e encontra nelas um modo de amadurecer. A câmera acompanha sua escuta e suas percepções com calma, sem exigir que a personagem ou o espectador decifrem a cronologia de um álbum que nunca esteve completo. Importa menos fechar um sentido do que reconhecer que o vínculo já está ali.

Vainilla entende que toda casa é também um país em miniatura. No Chile que segue costurando suas feridas, onde uma ditadura ensinou a silenciar e um machismo cotidiano ainda organiza papéis e expectativas, o filme prefere mostrar como isso age por dentro, na entonação das vozes, nos gestos que se repetem, no que não se diz por hábito ou por pudor. Não há discurso martelado, há a percepção de que certas hierarquias seguem rondando mesmo quando não há homens em cena. A política tem retratos difusos, chega como classismo ou malandragem, mas também como o cuidado que sustenta o dia.

A fotografia acolhe sombras e brilhos de fim de tarde, como se tudo estivesse sempre tocado por outra época. A montagem recusa o encaixe confortável e prefere o tempo que a memória pede, com pausas, retomadas e elipses que não se justificam, apenas acontecem. Algumas imagens surgem como fósforos que vão iluminando as próximas, e o filme confia que quem vê sentirá o calor delas, mesmo que o contorno não seja nítido. Não há o fetiche de encontrar a peça perdida, há o prazer de reconhecer que a história reaprende a existir cada vez que alguém a conta outra vez.

O afeto guia tudo. Mais doçura do que persistência, ele é uma força que mantém unido o que tinha tudo para se desfazer. Talvez por isso, Vainilla não termine em ruptura, termine em reconciliação. Não no sentido de apagar conflitos, e sim no de admitir que seguir em frente passa por escutar o que veio antes e devolvê-lo ao mundo com outra voz. A ficção faz o que os arquivos sozinhos não dão conta de fazer: oferece um lugar para que aquilo que ainda nos toca possa permanecer.

Quando os créditos chegam, a sensação é de que aquela casa, mesmo depois de perdida, continua aberta e recebendo visitas. Cada fotografia parece guardar um pouco de futuro, cada voz gravada devolve a presença a quem já não está. Vainilla não pretende consertar a memória, nem erguer monumentos. Prefere a companhia. E nesse gesto de manter por perto o que poderia ter se perdido, encontra a sua maneira de permanecer entre nós.

Um grande momento
A bisa finge desmaio

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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