- Gênero: Ação
- Direção: Ramesh Sippy
- Roteiro: Salim Khan, Javed Akhtar
- Elenco: Sanjeev Kumar, Dharmendra, Hema Malini, Amitabh Bachchan, Jaya Bhaduri, Amjad Khan, A. K. Hangal, Satyen Kappu, Iftekhar, Leela Mishra, Mac Mohan, Sachin, Viju Khote
- Duração: 204 minutos
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Há filmes que deixam de ser apenas cinema para se tornarem rituais de memória. Sholay (Cinzas, 1975), de Ramesh Sippy, é um desses casos. O que começou como uma superprodução de ação – uma história de foras da lei e bandidos – transformou-se em mito nacional. Meio século depois, o longa ainda tem sua importância, não pela nostalgia, mas por ter traduzido uma nação inteira em conflito com o próprio heroísmo. O contexto em que nasceu é decisivo para isso. A Índia vivia o estado de emergência decretado por Indira Gandhi, com censura, prisões políticas, medo.
O país, que vinha tentando se firmar entre o socialismo democrático e o capitalismo em ascensão, via suas utopias se esfarelarem. Nesse cenário, Sholay, mais que um entretenimento, foi uma catarse coletiva. O público não buscava apenas o duelo entre o bem e o mal, mas a possibilidade simbólica de reagir ao silêncio imposto. Assim como o fogo do título não é metáfora apenas da vingança, mas do desejo de sobrevivência.
Sippy escolhe o faroeste como molde, mas o adapta ao modo indiano. A aridez das paisagens, os enquadramentos largos e os duelos são heranças diretas do western de John Ford e Sergio Leone. Mas aqui, o deserto não é o espaço da conquista; é o retrato de uma terra exausta, que tenta reorganizar-se após o caos. Em Sholay, o heroísmo não nasce da bravura, mas da necessidade e a vila de Ramgarh é o microcosmo de um país que tenta manter sua integridade diante do colapso moral.
É curioso observar como o filme articula esse imaginário por meio da forma. A fotografia de Dwarka Divecha é solar, mas não luminosa. A luz fere, o dia é branco, o calor é seco e o ar vibra. Sippy filma a paisagem como reflexo emocional, onde cada plano aberto serve para mostrar o isolamento dos personagens e cada close é sufocamento. O scope amplia a solidão e transforma os horizontes em barreiras. O espaço é grande demais para a esperança, e o enquadramento, mesmo épico, carrega uma sensação de clausura.
A montagem de M. S. Shinde é uma das forças do filme. A alternância entre o tempo do espetáculo e o da espera define o ritmo narrativo. O silêncio antecede a ação e o som preenche o espaço depois da pausa. Essa cadência dá à narrativa um compasso próprio, quase musical. E, de fato, a trilha de R. D. Burman é central, não só ilustrando, mas comentando. As canções se infiltram na trama como rituais de lembrança, e a gaita de Jai, que atravessa o filme, funciona como elo entre o lirismo e a tragédia.
Nas relações que Sholay encontra sua espessura dramática. A amizade entre Jai (Amitabh Bachchan) e Veeru (Dharmendra) ultrapassa o arquétipo do companheirismo de luta. Existe ali ternura, humor, cumplicidade e uma vulnerabilidade rara. Sippy filma esses dois homens com um afeto que escapa ao estereótipo do herói. Voltando à gaita, quando ela ecoa ao pôr do sol, o gesto é íntimo e melancólico. A música, como o vento que percorre Ramgarh, parece lamentar o preço de ser corajoso.
O vilão, Gabbar Singh (Amjad Khan), é o oposto. Ele encarna a brutalidade sem culpa, mas também a solidão do poder. Sua presença, marcada por enquadramentos baixos e sombras projetadas, é o contraponto estético do olhar solar da vila. Sippy filma o mal com a linguagem do excesso, com cortes rápidos, gritos e descompasso. É a violência como espetáculo, mas também como doença. Nesse contraste, o filme revela sua inteligência formal, o equilíbrio entre o sensorial e o simbólico.
As personagens femininas, interpretadas por Hema Malini e Jaya Bhaduri, introduzem outro registro: o da intimidade. Contextualizando o filme e sempre pensando no momento em que ele foi lançado, elas não servem apenas como alívio cômico ou interesse romântico, mas como reflexo de uma sociedade em que a ternura é sempre atravessada pela perda. Suas presenças equilibram o épico e o doméstico, o público e o privado e há algo profundamente político em suas aparições, a lembrança de que a resistência também pode se dar pela delicadeza.
Sholay é, acima de tudo, uma lição de mise-en-scène. Cada movimento de câmera, cada inserção de som, cada pausa faz parte de um projeto de equilíbrio entre forma e emoção. A cena do ataque à vila, por exemplo, é um modelo de construção cinematográfica, com consciência no o uso da profundidade de campo, o enquadramento dos corpos em diferentes planos, a alternância entre distâncias. É o cinema como coreografia da tensão. O mesmo acontece nos momentos de silêncio, em que o tempo parece suspenso e a narrativa se mantém apenas pelo som do vento.
Ainda que monumental, o filme carrega uma melancolia que o distancia do triunfo. O heroísmo, aqui, não é glória, é sacrifício. O fogo do título não é purificação, é insistência. O que Sholay mostra, no fundo, é o custo de se manter de pé num país em ruínas, ou o preço de acreditar na justiça quando ela é impossível. Essa consciência amarga é o que o torna maior do que sua fama e mais complexo do que seu gênero.
Meio século depois, Sholay segue como um dos pilares do cinema indiano. Não apenas porque consolidou o formato masala, que mistura comédia, ação e melodrama, mas porque revelou que o cinema popular pode ser também imagem que reflete o país e o tempo. O fogo que Sippy acendeu em 1975 ainda queima, não como nostalgia, mas como lembrança de um povo que aprendeu a resistir dançando, cantando e lutando.
Um grande momento
Basanti dança


