- Gênero: Drama
- Direção: Carol Rodrigues
- Roteiro: Carol Rodrigues
- Elenco: Mawusi Tulani, Ana Flávia Cavalcanti, Rudimira Fula, Sarito Rodrigues, Ivy Souza, Alli Willow
- Duração: 95 minutos
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O cinema brasileiro vem apresentando estreia notáveis em longa-metragens, e Carol Rodrigues era uma dessas cineastas que estávamos esperando. Um de seus curtas, A Felicidade Delas, era um projeto especial que acenava à sensibilidade e aos temas que eram de interesse da cineasta. Agora, ela chega aos longas com Criadas, que passou pelo Festival do Rio sendo premiado (melhor atriz, dividido entre suas protagonistas, Ana Flávia Cavalcanti e Mawusi Tulani), conseguindo transitar entre o naturalismo e uma certa aura histórico-fabular de forma equilibrada. Ainda que sua temática já tenha sido explorada em outras obras, a qualidade do texto e a sinceridade do retrato colocam o filme como um acerto cuja sustentação é coletiva.
A aparente simplicidade não esconde seus méritos mais complexos, como a da encenação que busca nos códigos do artifício, uma comunicação com um recorte cotidiano da vida. Sandra é uma arquiteta que tem dificuldade em conseguir um novo emprego, e precisa recuperar uma imagem de sua mãe, qualquer uma; o rosto dela está se perdendo no tempo. Mari é uma chef prestes a conseguir a sonhada promoção no restaurante onde trabalha, e tem uma relação pouco culpada com o passado familiar. Criadas não nomina o caos exterior pelo qual ambas passam a viver, mas o racismo as persegue por onde elas vão; a surpresa do roteiro acontece a partir do momento em que o filme passa a investigar profundamente as origens do desacerto entre essas duas primas.
A relação entre as duas primas não nasce no que vemos, mas no que está fora do quadro, temporal inclusive. É muito interessante como Rodrigues utilize, em sua abertura, uma cena já em andamento, como se estivesse aludindo a respeito de algo que não tem começo mesmo, verdadeiramente. Sandra e Mari cresceram juntas, logo não existe algo a nascer entre elas; a dinâmica nociva é anterior às suas existências, provavelmente. Criadas flagra o hoje, ainda que rasgue essa contemporaneidade de uma maneira abrupta; de repente, é o conflito de sempre, adormecido, que volta à sombrear essa relação que viveu em torno desse aspecto.
Porém, não há conserto no que não foi tentado consertar. Dessa forma, a abertura de Criadas se conecta ao desfecho no sentido da organização do caos, porque era preciso chegar naquele estágio para que algo, enfim, pudesse sonhar com algum tipo de florescer. Mas o que está na ordem do dia aqui é a manutenção dessas relações, e não o lugar de onde elas partem ou onde terminarão; suas importâncias são óbvias, mas elas não definem o todo. O que vemos acontecer de forma gradual é a toxicidade nossa de cada dia, que não pede licença porque nem se imagina negativa; é a entranha mais profunda de um lugar, representado fisicamente por uma casa palco de horrores emocionais.
Criadas estabelece discussões que vagam pelas entrelinhas de um status polêmico porque não apenas mostra relações de submissão e vínculos escravagistas dentro de uma família. Ele move as garras do racismo e do classicismo entre pessoas pretas, e para isso, a próxima categorização a ser debatida é a do colorismo, que o filme banca. Mas é bom que seja observado como nada em cena narrativa é feito de maneira explícita, porque quase nada na vida real é feito de maneira explícita. São sinais diários, são estranhezas de tom e construções de frases que não se furtam em esbarrar na violência mais comum, que é a cujo sangramento ocorre por dentro de quem é machucado.
A beleza da fotografia de Julia Zakia (diretora de Rã ao lado de Cavalcanti) realça os contrastes entre duas personagens que deveriam ser cúmplices, mas que se encontram em contradições constantes. É uma luz que marca suas ações de formas distintas, mas que se relacionam de maneiras intercaladas; quando uma ação é quente de parte de uma das duas, a recepção da luz para a outra é esfriada, e vice-versa. Estamos diante de um jogo que precisa de reflexão de quem bate e de quem apanha, porque a lembrança das ações deve ser mútua e contínua. Só assim os erros do passado (nossos ou de quem veio antes de nós) possam ganhar ressonância a ponto de, aí sim, permitir o silêncio da reflexão. Mas antes, que venham os embates.
Um grande momento
Estabelecendo o conflito frio desde a primeira sequência


