Críticas

O Testamento de Ann Lee

A fé que derrubou o patriarcado

(The Testament of Ann Lee, GBR, EUA, 2025)
Nota  
  • Gênero: Musical
  • Direção: Mona Fastvold
  • Roteiro: Mona Fastvold, Brady Corbet
  • Elenco: Amanda Seyfried, Thomasin McKenzie, Lewis Pullman, Stacy Martin, Tim Blake Nelson, Christopher Abbott, Matthew Beard, Scott Handy, Viola Prettejohn, Jamie Bogyo, David Cale
  • Duração: 137 minutos

Ann Lee é uma dessas figuras históricas que o cinema raramente olha com calma. Líder religiosa, dissidente, fundadora de uma comunidade que rompeu com o modelo social de seu tempo. Trazer sua história para a tela é uma decisão arriscada e O Testamento de Ann Lee parte dessa escolha com inteligência, interessado na radicalidade de um projeto de mundo que se constrói a partir da experiência concreta de uma mulher.

Nascida na Inglaterra do século XVIII e perseguida por suas crenças, Ann Lee lidera um grupo que atravessa o Atlântico e funda nos Estados Unidos a comunidade Shaker. Uma sociedade baseada no trabalho coletivo, na igualdade entre homens e mulheres e no banimento do sexo. Uma decisão que nunca deixou de ser estratégia política, pois, ao retirar o sexo da organização social, Ann Lee desloca um dos principais instrumentos de controle sobre o corpo feminino. A reprodução deixa de estruturar a vida em comum e o desejo perde centralidade como forma de poder.

Mona Fastvold constrói essa trajetória com curiosidade. A narrativa se concentra na experiência cotidiana daquela fé. Ann Lee surge como uma mulher atravessada por convicções profundas, capaz de liderar e impor disciplina. A espiritualidade aparece como prática contínua, sustentada pelo corpo e pela repetição.

A dança é fundamental nesse processo e isso é esteticamente destacado nessa espécie de musical inusitado. Nos rituais Shaker, o movimento do corpo funciona como canalização do desejo, reorganizando a energia que não encontra expressão na sexualidade. O Testamento de Ann Lee observa esses momentos entendendo que o corpo permanece ativo, em esforço e em ritmo. A fé se manifesta no gesto, no cansaço, na entrega física.

A relação com a natureza também é um meio de reforçar essa lógica, surgindo como espaço de ordem e continuidade. O trabalho na terra, o silêncio e a repetição das tarefas estruturam uma ideia de harmonia que sustenta a comunidade. Viver de outra forma exige disciplina e renúncia, escolhas que moldam cada aspecto da vida cotidiana.

Não há como falar do musical sem citar Amanda Seyfried, que interpreta Ann Lee de maneira entregue, firme, e, na chave da contenção, alterna estágios de sofrimento e alívio. Sua presença se constrói pela persistência, e pela coerência entre discurso e prática. A liderança emerge do acúmulo de gestos e da constância, não do carisma imediato. O longa evita o caminho mais fácil e acompanha essa escolha sem exagerar em picos emocionais.

Existem questões com o ritmo e o tema dificulta a conexão para alguns, mas O Testamento de Ann Lee interessa justamente por recuperar a história de uma mulher que enfrentou estruturas religiosas, sociais e sexuais profundamente enraizadas. Um filme que olha para a fé como ferramenta de ruptura, para o corpo como campo de disputa e para a comunidade como experiência política sustentada no cotidiano. Sem idealização, com atenção ao gesto e às consequências de viver fora da norma.

Um grande momento
A primeira dança

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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