Crítica | Festival

Para Vigo me voy

Um lugar de afeto e comunhão

(Para Vigo me voy, BRA, 2025)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Lírio Ferreira, Karen Harley
  • Roteiro: Lírio Ferreira
  • Duração: 97 minutos

VIgo é um lugar fantástico, onde o impossível acontece, encantando as pessoas, ora como a neve que cai no Brasil profundo e no truque que se realiza na tela, ora como o cinema que permanece dentro da gente. “Para Vigo me voy!” poderia ser só uma conga de Ernesto Lecuona, mas é a frase mágica de Cacá Diegues que virou o abracadabra de Lorde Cigano para o deslocamento e deslumbre do público, truque máximo da trupe de Bye Bye Brasil na tentativa de vencer a modernidade que ameaçava a arte. Hoje, como título do documentário que visita a vida do cineasta, a expressão volta não só como mágica e cinema, mas como chave de leitura: é uma despedida que não fecha portas, é uma promessa de passagem.

Há ainda no título uma outra camada de intimidade e afeto. Lembrança de toda uma obra que atravessou gerações, ele é, ao mesmo tempo, uma senha que permite ao espectador entrar nesse espaço de comunhão. E é justamente de comunhão que trata Para Vigo me voy. Afastado do formato de documentário explicativo, sem cabeças falantes, o longa prefere caminhar lado a lado com o cineasta, trazendo o presente em forma de encontro, numa festa sem filtros e arranjos, com a vida se misturando ao cinema e o cinema assumindo seu lugar de memória coletiva diante da câmera.

O passado chega de outra forma. A escolha de não trazer entrevistas atuais reforça o gesto de manter a obra em fluxo, como se as imagens pudessem falar por si mesmas. Testemunhos externos não são tão necessários para validar a trajetória porque os filmes de Cacá já são a história, a sua e a do país que ele queria mostrar. Ainda assim, a voz do cineasta, em antigos e variados registros, nos guia e traz reflexões que ecoam como em uma conversa íntima. São falas que não explicam, mas acompanham e costuram lembranças pessoais e artísticas. Outras impressões também estão no filme, em falas antigas de vozes próximas, num gesto que talvez traga mais curiosidade e apego ao material do que acréscimo real ao projeto como vinha se construindo até ali.

Outro fio que organiza a experiência – indissociável da obra do diretor – é a música. Em toda a sua filmografia, a trilha musical nunca foi só um ornamento. Na verdade, sempre ocupou um papel importante na narrativa. Fora a canção homônima, interpretada por Ney Matogrosso e Pife Moderno, composta exclusivamente para Para Vigo me voy, as músicas do documentério vêm diretamente das cenas de filmes como Xica da Silva, Tieta, Quando o Carnaval Chegar, o próprio Bye Bye Brasil e tantos outros, trazendo com elas Chico, Caetano, Gil e até Roberto Carlos. São canções que não apenas pontuam os momentos, mas trazem o próprio diretor para mais perto de nós. Como se a obra fosse ele, inteiro, devolvido em fragmentos audiovisuais que ajudam ainda mais a ativar lembranças e afetos. Como se estivéssemos outra vez na sala de cinema ou de casa, vivendo de novo a intensidade daquelas histórias.

Em um complexo trabalho de costura do material de arquivo, ao acessar tantos espaços individuais, o filme também abraça algo que vai além da pessoa sem jamais se descolar dela. O Cinema Novo é revisitado não como vitrine, mas como parte constitutiva de um olhar. Em comparação aos colegas, Cacá sempre foi visto como alguém que trazia um cinema de afeto, mais aberto ao popular, mas sua importância não se mede por hierarquia. O documentário reaviva a história, lembrando que a pluralidade do cinema brasileiro também se constrói na diferença.

Se a direção acerta em boa parte das escolhas e a montagem merece elogios pela competente quantidade de material que costura criando um vínculo afetivo real com o espectador, Nem tudo, porém, encontra o mesmo fôlego. Há um vai e vem temporal instigante em um primeiro momento, mas que se repete a ponto de enfraquecer a cadência. O jogo das idas e vindas que pode ser encantador, se torna hábito e o documentário chega perto de se perder em sua própria estrutura. Existe um risco de que a força de parte das imagens se perca no excesso, em especial aquelas mais recentes, que já teriam menos vigor, mas são importantes para as gerações mais novas e menos apegadas à filmografia do diretor..

Ainda que tenha as suas fragilidades, Para Vigo me voy consegue devolver o cinema de Cacá Diegues ao espaço que sempre lhe pertenceu: o da partilha. E o faz sem nostalgia paralisante, sem a tentação de museu. O que surge na tela é movimento, é permanência, é a lembrança de que esse cinema não é apenas história, mas presente vivo e, por que não?, mágica. Ver o filme é reencontrar os afetos que nos atravessaram e, de algum modo, ainda continuam atravessando.

Um grande momento
Dirigindo Jofre Soares

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
Assinar
Notificar
guest

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

0 Comentários
Mais novo
Mais antigo Mais votados
Inline Feedbacks
Ver comentário
Botão Voltar ao topo