- Gênero: Drama
- Direção: Kirill Serebrennikov
- Roteiro: Kirill Serebrennikov
- Elenco: Alyona Mikhailova, Odin Lund Biron, Filipp Avdeev, Ekaterina Ermishina, Varvara Shmykova, Natalya Pavlenkova, Vladimir Mishukov
- Duração: 140 minutos
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É da natureza do onírico não nos manter cientes do que estamos “vivendo”, ali naquele momento do sonho, diante daquelas imagens, de acordo com aqueles códigos. Sonhar é experienciar o fascínio em torno da concretização de desejos que, muitas vezes, não sabíamos tê-los e então tentar capturar sua duração. No filme onde sua voz foi amplamente projetada, Verão, o diretor russo Kirill Serebrennikov não estava ainda mergulhado nessa dinâmica, ainda que o recorte monocromático delegue a essa obra um caráter suspenso da realidade. A estreia de A Esposa de Tchaikovsky nos cinemas reforça que o seu cineasta, mesmo lidando com eventos não-ficcionais, trata de unir esses personagens em uma atmosfera cuja opressão social permite ao sonho o alcance projetado. Mas, como não sabemos o que virá ao dormir, há de se tomar cuidado com a projeção de nossos intentos.
Em seu longa anterior, A Febre de Petrov, Serebrennikov já tinha adquirido o interesse por essa atmosfera alheia ao realismo, adentrando a esfera da proposição múltipla. Estamos e ao mesmo tempo não estamos em um ambiente delirante, lá condicionado a um adoecimento, social ou não. A doença também eclode em A Esposa de Tchaikovsky, mas não é dela o ponto de partida; embora a cena de abertura já explicite o caráter da obra, ela é um fim para o início. De qualquer maneira, é no balé que nasce nessa cena – e que será ampliado durante a projeção – que somos convidados ao percurso devaneante das memórias, e de como elas mesmas também são projeções, logo igualmente não-realistas.
A Esposa de Tchaikovsky, por assim dizer, parte de um pressuposto acerca da forma como nossas lembranças são acessadas, e a partir de que tipo de sentimento. Se a doença já nos corroeu, se o desamor nos envolveu em uma série de possibilidades falaciosas, o que estará ao nosso alcance será mesmo a imaginação prodigiosa, e dela o nascer de uma encruzilhada, que nos alce a atmosfera do sonho ou nos soterre em pesadelos cada vez mais sombrios. Serebrennikov não apenas se interessa narrativamente pelo que constrói, mas realmente constrói isso em imagens, em sensações, na última tentativa possível de compreender o incompreensível, e nos carregar ladeira abaixo aos estertores do desespero romântico-amoroso.
Aos 51 anos, o diretor russo não tem qualquer obrigação em recriar a realidade, principalmente uma de 150 anos atrás. Ele trabalha com a base dos fatos, e o resto é investido em mise-en-scene. Existe a costura por trás dos eventos, um roteiro (que é excelente, diga-se) que trabalha para esquadrinhar suas ações práticas, mas seu olhar é, a cada novo obstáculo vencido, avançar para o plano. Dos quadros que ele pinta com a luz, poucos serão esquecidos ao fim da sessão, onde é promovido constantemente um jogo onde o escuro vai progressivamente se tornando ainda mais onipresente e ostensivo. Nesses momentos, o vermelho de um vestido salta aos olhos, a palidez da pele desnuda nos obriga a recalcular o nervo ótico, o alaranjado da labareda ilumina um espaço cada vez mais lúgubre.
Como uma força abandonada, a memória acessada em A Esposa de Tchaikovsky trai a protagonista e convida o espectador ao mesmo jogo de erros. Não há mais certo ou errado, e sim a falta de concretização de um romance maior que o caráter da luta. É a desilusão dessa criação particular que forja uma personalidade com o qual o filme se degladia; Antonina Ivanovna Miliukova também foi compositora, assim como o homem que escolheu para ser seu, mas em tela abdica de qualquer traço de personalidade por uma gana. De quê, exatamente? De ser ouvida, de ter também os seus desejos respeitados, de ter motivação e espaço, de ter o alcance e o respeito delegados apenas aos Homens. Não se trata apenas de falta de amor, mas da falta do espaço cênico e da representatividade que um corpo feminino também pede. É particularmente interessante que Serebrennikov limite ao homem a exposição da nudez, até com algum deboche, já que isso sempre foi um papel da mulher – se despir para ser o foco da libido, e muitas vezes da chacota.
Que saibamos, conforme se adiante, cada vez menos a diferença entre o que é concreto e o que é força abstrata; é uma escolha de condução da direção e do roteiro que eleva o resultado de suas imagens. A Esposa de Tchaikovsky, vai além do que comumente é destrinchado no campo das biografias, porque abraça o que a construção do plano pode causar enquanto estrutura de diegese. De posse desse caleidoscópio que une frustração sentimental, delírio do tempo e explosão de uma condição feminina que se recusava a aceitar as limitações impostas, nasce um filme que recusa o poder da exposição dos fatos. Na embriaguez dos sentidos que a imagem proporciona, movendo-se pelos quadros com uma paixão avassaladora e criando uma contradição pertinente, o filme tratar da completa ausência de doação romântica com uma explosão de sentimentos e sensações.
Um grande momento
O balé do delírio, de sala em sala