Crítica | Cinema

A Garota Radiante

(Une jeune fille qui va bien, FRA, 2021)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Sandrine Kiberlain
  • Roteiro: Sandrine Kiberlain
  • Elenco: Rebecca Marder, André Marcon, Anthony Bajon, Françoise Widhoff, India Hair, Florence Viala, Ben Attal, Cyril Metzger, Jean Chevalier
  • Duração: 95 minutos

Em determinado momento de A Garota Radiante, estreia dos cinemas dessa semana, Irène precisa encarar Gilbert, seu grande amor de outrora, e explicar seu novo status. O que vemos no rosto de Jean Chevalier por segundos é a radiografia do que está em curso na narrativa durante hora e meia: estar diante do fim, que nem se imaginava como tal até ali. Embora o filme não trate disso na superfície imediata, é diante do fim que estamos – todos os dias, inclusive. Mas seria leviano observar somente um aspecto do que é tratado aqui, e justamente a história, quando a História está pedindo para ser contada, ou ao menos notada. Como um fantasma, a alegoria invisível que assombra ainda que não seja tátil, estamos na França, provável início dos anos 40. O resto, levando em consideração as origens judaicas da família de Irène, está em entrelinhas cada vez menos discretas, conforme o filme avança.

Sandrine Kiberlain, a grande atriz de Crônica de uma Relação Passageira, estreia como diretora e roteirista aqui nesse estudo de muitas ordens. De um recorte etário, de uma personagem, de um tempo histórico, de uma fatia cinematográfica que também nos desloca para um outro registro. Por trás disso tudo, o filme investiga as possibilidades de encarar um evento (ou eventos, no macro ou no micro) pelo lado avesso ao que é normalmente tratado. Ou ainda promover uma forma de encarar a História sob o ponto de vista de quem passou ao largo da mesma. Particularmente, vivi em uma família que passou ao largo da ditadura, que não teve qualquer envolvimento com o genocídio promovido pelo golpe militar por quase 20 anos no Brasil sem sequer saber do que se tratava, à época.

A Garota Radiante
Divulgação

Não é como se estivéssemos à mercê de um filme sobre alienação. A Garota Radiante é um bicho raro, quiçá inédito – ou ao menos pouco aventado – sobre o avanço do seu tema pelo mundo, em qualquer época, mas principalmente naquela desenvolvida. Não estamos diante dos fatos concretos que ocuparam os livros, mas da margem desses eventos, o que acontecia junto à radical (e destruidora) mudança na vida de pessoas comuns há 80 anos atrás. Como a cortina do cotidiano foi sendo sutilmente devassado pela onda sanguinária sem sequer ser percebida, deixando pelo caminho amores, planos, carreiras, sonhos. Sorrisos. Cena a cena, o roteiro vai tecendo o mais delicado fio que uniria o acaso de um grupo de adolescentes envolvidos com a arte, e o ocaso de um tempo de inocência. 

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Porque, ainda que tenha seu registro histórico obrigatório, A Garota Radiante é também uma produção que cuida de um registro de ‘coming of age’, onde a “age” da expressão é o que mais importa – e mais afetado pela tal mudança. Não é apenas um (brilhante) retrato sobre “o dia antes de tudo mudar”, mas joga esse conceito muito forte em um desenvolvimento sobre o término das coisas, e em como lidamos com cada fim, que geralmente nos assola desprevenido. A suavidade com que filma aqueles personagens, com a pureza de um dia a dia tão banal como fascinante pelos afetos, pela descoberta pura das paixões, leva os códigos de Kiberlain para o cerne do melhor cinema francês. Como mergulhar na naturalidade das coisas, das relações, dos fins e dos começos, e dos começos que não sabemos quanto e se durarão.

Recheado de uma urgência surda que corre ao largo do que está no quadro principal, A Garota Radiante é como uma nuvem de algodão doce salpicada de veneno. Sem pedir licença, vemos sendo criado em torno de Irène, seu irmão Igor, seu pai André, sua avó, e seus amigos, um cada vez mais espesso sentimento de desproteção, que se aproxima para ruir o idílio juvenil a princípio, mas familiar como um todo. É como se, de uma hora pra outra, as pessoas se vissem assolada por uma mudança insondável e impossível de impedir – a vida adulta, ou a velhice, ou a morte. Cada um desses personagens principais está no limiar de uma radicalização etária, a ida de um lugar à outro que começa a se fazer presente. É o fim, literalmente, do que se vivia e como se vivia – e dali pra frente, tudo estará em nova configuração, em aplicação do tempo particular ou do coletivo. 

A Garota Radiante
Divulgação

Paralelo à protagonista, vemos que tanto seu pai quanto sua avó são igualmente empurrados para novos modelos de suas existências, que não necessariamente foram desejados, mas que precisam ser aceitos. O jantar em família onde recebem Josiane, e o diálogo melancólico entre Marceline e sua amiga, dizem tanto por eles enquanto personagens, quanto por seu tempo, em rota de reconfiguração. Não se trata de uma desintegração coletiva, mas de observar que as coisas mudam, e nem sempre somos os responsáveis por tais. A Garota Radiante é um filme constituído de tanta sutileza, tanta coisa que está encoberta por fumaça mas se percebe tão vital pra narrativa e pra reflexão, que talvez em novas sessões, ainda mais camadas sejam apreendidas. 

Rebecca Marder move a personagem-título com a leveza que a alcunha pede, mas isso não a impede de perceber o caos que se instala gradativamente dentro da própria casa/próprio corpo. Pergunta o que queria, para em outro momento ouvir o que não queria, mas sempre avança sua protagonista de desenho arrojado e desfecho acertadamente etéreo. A Garota Radiante, que se interessa mais pelo agridoce que por ser taxativo na tragédia que se imagina, encerra sua projeção com outro duo de olhares. Da hiper estimulação de sentidos expressada por Irène até o grau máximo de desespero na Viviane de India Hair, estão frente a frente os dois lados de uma produção surpreendente, e praticamente irretocável sobre como se movimentar dentro de algo tão desconfortável como o fim. De algum tudo. 

Um grande momento
Inúmeros, mas “eu esqueci você” 

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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