- Gênero: Comédia
- Direção: Arantxa Echevarría
- Roteiro: Olatz Arroyo
- Elenco: Belén Rueda, Jose Coronado, Gonzalo de Castro, Pepa Aniorte, Gonzalo Ramos, Carolina Yuste, Lalo Tenorio, Huichi Chiu, Lucía Delgado, Jesús Vidal
- Duração: 110 minutos
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Aquela surpresa gostosa, requentada, até estereotipada, levemente abarrotada de clichês: sejam bem-vindos a A Família Perfeita, lançamento Netflix que é exatamente tudo aquilo que você imagina, sem qualquer medo de ser feliz. Porque, às vezes, é exatamente isso que acaba dando certo, a despeito de outras produções a que poderiam ser atribuídos as mesmas questões, ficam para trás? Além da subjetividade, que é uma máxima no cinema em qualquer época, temos que perceber também o talento coletivo por trás de cada projeto, que nem sempre conversa bem junto. Por mais que aperte teclas repetidas por tantos outros, inclusive nos problemas, o longa de Arantxa Echevarría (de Carmen & Lola) faz o trabalho de casa que muitos esquecem de fazer, e realiza aquele passatempo ideal.
Sabemos como é o cardápio do streaming – promete muito e entrega pouco, isso de maneira geral. Quando um produto se abre de maneira repetitiva, até meio grosseira e bastante equivocada, não temos como esperar o melhor. Geralmente quando tem focinho de porco, pé de porco e rabo de porco, é porco; mas… e quando o porco foi a um spa animal e saiu de lá cheirosinho? Echevarría, e sua roteirista e produtora Olatz Arroyo, conseguem administrar bem as deficiências (ou mesmices) de sua produção, e assumir o que se espera – sim, temos um longa manjado, agora vamos dar uma apimentada no barato. O resultado é o mesmo filme de sempre, porém quando menos esperamos, uma curva na estrada nos faz acompanhar outro tomo da narrativa, e nesse tempero o filme cresce e aparece.
Não há nada que se configure como elaborado esteticamente, ao longo da projeção. Seus créditos de abertura, na segunda utilização de “Águas de Março” da temporada (sem qualquer outra coisa que o aproxime de A Pior Pessoa do Mundo, por favor), até avisam que poderíamos estar diante de uma produção um pouco mais sofisticada, mas a utilização da música somente tenta cercar o mundo de Lucía, sua protagonista. Na cena seguinte, já somos apresentados a seus contrapontos, e não dura 5 minutos para que toda uma gama de previsibilidades recheie a tela com questões muito absurdamente antiquadas. Ok, o filme torna seus personagens quase detestáveis de tão carregados, mas fica óbvio que todo esse esquema é também ele um clichê narrativo para que a desconstrução posterior funcione, e ela nem demora a dar as caras para o público.
A partir de uma premissa tão ordinária (família elegante é obrigada a se unir a família simplória por conta de uma união matrimonial disfuncional, e daí nasce o conflito), o filme chega a uma encruzilhada e escolhe remontar seu argumento para eleger um olhar feminista para a mulher de hoje, tanto a que se dedicou ao marido e filhos, quanto a que saiu à luta para ajudar economicamente a casa. Mais: o filme troca os papéis sociais entre esses dois tipos de Mulher, e ainda defende a renovação do olhar para a estereotipação que, de vez em quando, volta a fazer parte do mundo real. Ou seja, o que deveria ser uma produção para cair no gosto do espectador mais tradicional possível, se vê com uma responsabilidade que é exercida com alguma destreza. Sem qualquer mínima pressão, uma comédia não deixa de ser cômica e assume um papel bem interessante no sentido de incutir alguma relevância a uma discussão que nem aparentava que fosse acontecer.
A Família Perfeita, afinal, não é sobre esse embate de elementos estranhos a seus personagens, grupos de classes sociais diferentes que precisam criar uma espécie de relação entre si. Essa questão está ali, em algum lugar, mas é colocada de lado para abrigar primeiramente uma ideia de renascimento afetivo de pessoas acima de 60 anos – os quatro personagens passam por uma provação emocional que não está prevista na sinopse, ainda que somente as personagens femininas sejam destaque e tenham relevância em suas decisões. A seguir, o filme passa a se dedicar a essa ideia de representar as variações do papel da mulher na sociedade, em diferentes momentos da vida, em diferentes classes, com diferentes (e divergentes) opções de passado, presente e futuro.
Então, sem perder a graça (tampouco as grosserias que permeiam uma narrativa como essa, quase o molho do todo), A Família Perfeita deixa claro que, um produto comandado por mulheres, por mais grosseiro que seja, terá um molho diferenciado, mesmo que o sabor continue o mesmo. Aqui para o Brasil, além da composição de Tom Jobim, ainda temos Chico Buarque, entoada por Ana Carolina em “Eu Te Amo”, em momento especialmente delicado da direção, que faz lembrar um momento-chave de Um Lugar chamado Notting Hill. Ou seja, ainda que não apresente nada além de um feijão com arroz na apresentação, essa feijoada espanhola protagonizada por uma encantadora Belén Rueda (de O Orfanato) sabe como dosar especiarias típicas do nosso tempo para fazer um prato com sabor, digamos, menos convencional.
Um grande momento
A discussão que termina na chuva – belo diálogo, por sinal