Crítica | Outras metragens

A Nave que Nunca Pousa

Sob ameaça constante

(A Nave Que Nunca Pousa, BRA, 2025)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Ellen Morais
  • Roteiro: Ellen Morais
  • Duração: 15 minutos

No sertão paraibano, o curta A Nave Que Nunca Pousa fala do que não aterrissa, mas incomoda. Ellen Morais constrói um terreno quase ficcional nas terras de Serra do Talhado, onde uma presença aérea – metafórica e literal – expõe os impactos visíveis e invisíveis da chegada de usinas eólicas à já conhecida comunidade quilombola. Em apenas 15 minutos, o filme ultrapassa os limites do documentário convencional e se torna uma ficção científica social, jogando luz sobre tensões históricas e ambientais.

A narrativa híbrida mergulha no real e no imaginado. Entre performances místicas, moradores falam do passado e dos desdobramentos da implantação das turbinas eólicas, ao mesmo tempo em que insinuações audiovisuais da aproximação de uma “nave” criam um clima de estranhamento. O elo com o clássico Aruanda de Linduarte Noronha está não só na locação compartilhada, mas em como o curta de Morais busca a memória e imagina o futuro de uma comunidade retratada há décadas e que agora sofre as consequências de um progresso vazio. Pensando na possibilidade de reinvenção e ressignificação de antigos registros, o diálogo entre o passado e o presente dá ao curta uma outra camada de força histórica e estética.

O resultado é uma metáfora potente. A tal “nave” nunca pousa, mas seu efeito é devastador, deixa terra ferida, casas alteradas e um modo de viver em choque. Essa instalação de tecnologia limpa, apresentada muitas vezes como progresso, traz a todo o ecossistema de um local ruptura, desbalanceamento e medo. O curta encontra a intimidade para que os moradores demonstrem o impacto cotidiano perturbador, que vai além do físico.

Visualmente, o filme casa o registro documental com momentos quase etéreos, onde planos fixos se alternam com sequências que aludem ao voo ou à presença alienígena, reforçando esteticamente a coexistência entre o real e o simbólico. O som recria uma tensão de angústia e espera que impregna A Nave que Nunca Pousa. Não há ostentação, mas há presença. Do som do vento ao som da turbina, a edição compacta, assertiva, intensifica cada detalhe. A ficção científica aqui não suscita suspensão, mas reflexão.

Um grande momento
Tirando o protetor

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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