Crítica | Streaming e VoD

A Noite Devorou o Mundo

(La nuit a dévoré le monde, FRA, 2018)
Terror
Direção: Dominique Rocher
Elenco: Anders Danielsen Lie, Golshifteh Farahani, Denis Lavant, Sigrid Bouaziz, David Kammenos
Roteiro: Pit Agarmen (romance), Jérémie Guez, Guillaume Lemans, Dominique Rocher
Duração: 93 min.
Nota: 6 ★★★★★★☆☆☆☆

“Os zumbis chegam no momento certo. Era a hora de eles entrarem em cena.”
Pit Agarmen

São 86 anos de zumbis nos cinemas e há sempre um novo modo de se explorar a existência dessas criaturas fantásticas nas telas. Desde White Zombie (1932), longa-metragem de Victor Halperin, com seres que perdiam suas almas em um ritual macabro e viravam escravos espirituais; passando pela ferrenha crítica social de George A. Romero em A Noite dos Mortos Vivos (1968), com seus mortos-vivos comedores de carne humana, já foram muitas as histórias contadas.

Os zumbis também são peças fundamentais no longa-metragem francês A Noite Devorou o Mundo e, ainda que tragam de Romero o seu desespero pela carne humana, servem como uma justificativa distanciada, aquela ameaça que vai possibilitar um aprofundamento em questões humanas que vão do isolamento auto-imposto às consequências psicológicas da solidão.

Apoie o Cenas

A intenção de direcionar a observação à pessoalidade já pode ser percebida nos primeiros momentos do filme, quando o diretor Dominique Rocher apresenta seu protagonista, Sam, vivido por Anders Danielsen Lie. Aquele homem introspectivo e escanteado em uma festa pela única pessoa que conhece, que se mistura à multidão numa casa que parece ter sido a dele, no movimento de buscar coisas suas que haviam ficado para trás, desperta uma identificação imediata, que traz a sensação de constrangimento e melancolia.

Deixando de lado o capitalismo e a exclusão consumista que permeiam o livro homônimo de Pit Agarmen (pseudônimo de Martin Page) no qual o roteiro se inspira, é nessa metáfora do fim drástico e indesejado que a chave dos zumbis de Rocher se constrói, numa relação entre o rejeitado e a consequente construção social indesejada e ameaçadora. O novo universo mental de Sam ganha realidade e povoa as ruas de Paris em criaturas que, mesmo sem vida, perambulam na intenção de devorá-lo, numa espécie de perigo constante que o faz voltar-se para dentro de si mesmo.

Trancado no apartamento, que limpa cuidadosamente e prepara para seu isolamento, aquele homem tenta seguir vivendo, mesmo que talvez esteja mais morto do que todos que estão fora daquela delimitação espacial. Ali ele volta às suas criações musicais e passa o tempo com trivialidades, mas, como ser social que é, por determinação da espécie, não resiste à própria humanidade. Assim, arrisca-se na tentativa de conseguir um animal de estimação que o faça companhia, ou faz amizade com o zumbi vivido por Denis Lavant, que está preso no elevador e com quem insiste em conversar, mesmo que não haja resposta.

Com o passar do tempo, sua sanidade começa a vacilar e é preciso que um estímulo exterior o faça ter a real noção disso. Ainda que muito do que aconteça chegue com facilidades do roteiro, sem que haja o aprofundamento necessário, a ideia por trás dessa degeneração interior e a óbvia, porém esquecível, confirmação da necessidade social transformam o longa francês em algo muito mais instigante.

Além da análise profunda, há ainda outras qualidades que merecem destaque. A construção do suspense é segura e acertada, com um bom uso da trilha sonora de David Gubitsch e um comedimento necessário aos sustos. A caracterização dos zumbis, fundamental em filmes do gênero, também é competente e há toda uma preocupação na construção dos planos e no tempo das cenas que não pode ser ignorada.

Assim, A Noite Devorou o Mundo é a prova de que, mesmo que tantas histórias com zumbis já tenham sido contadas, as metáforas em uma sociedade claramente doente e incapaz de lidar com a realidade estão longe de se esgotar. Um filme que, consciente das suas limitações e qualidades, se apropria do material que tem para entreter e permanecer na cabeça por algum tempo após a projeção.

Um Grande Momento:
Libertando Alfred.

Links

IMDb

Crítica publicada originalmente na revista Lume Scope.

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
Botão Voltar ao topo