Crítica | Cinema

A Substância

O eterno medo de envelhecer

(The Substance, GBR, FRA, 2024)
Nota  
  • Gênero: Terror
  • Direção: Coralie Fargeat
  • Roteiro: Coralie Fargeat
  • Elenco: Demi Moore, Margaret Qualley, Dennis Quaid, Edward Hamilton-Clark, Gore Abrams, Oscar Lesage, Christian Erickson, Robin Greer, Tom Morton, Hugo Diego Garcia
  • Duração: 141 minutos

O padrão. Inatingível, mas desejado desde sempre. Vivemos em um mundo em que nascer mulher é, automaticamente, ter que se encaixar, moral, psicológica e esteticamente. “Ninguém vai te respeitar se”, “Ninguém vai gostar de você se”, “Ninguém vai te querer se”. E por mais que se dê ombros, a máquina de moer gente que é a sociedade, com todos os seus padrões, bombardeia a mensagem incansavelmente, de todas as maneiras possíveis. A paz consigo mesma, e até o amor por si, é algo muito difícil de se encontrar. Quando se encontra, isso não dura muito tempo. Literalmente. Além do bombardeio externo, internamente o caos está pronto para chegar, com o corpo e a mente passando por uma transformação que, embora tenham arrumado meios de minimizar, não pode ser controlada e não vai esperar. É assim para mim, para a Maria, para Joana, para a Ana, para a Valentina e até para a Alessandra Negrini, todas que, de alguma maneira, estão nesse ciclo de adequação a algo que não existe.

Assim na vida cotidiana, muito pior na indústria, onde as mulheres vivem da imagem – tornando-se símbolos, inclusive, desse patamar inatingível para o resto da sociedade. Depois de anos de sacrifício e cuidado, de muita dedicação ao corpo, a idade chega trazendo a falta de hormônios e colágeno. O corpo, antes cultuado por todos e tratado como “aquele a ser almejado”, é descartado, trocado por outro. O padrão também não aceita mulheres velhas. Nesse ciclo malefício, há dois pontos: para essas pessoas, especificamente, o desmoronar psicológico com o descarte; para todas as outras, inclusive elas mesmas, a falta de representação que reafirma a inadequação de seu próprio corpo velho – ou o pavor de chegar a reconhecê-lo.

Eis que surge Coralie Fargeat com A Substância, um conto de terror alucinado que acerta no ponto. Em tela, Demi Moore, ícone de beleza nos anos 1990, espelho – e também sinônimo de frustração estética de milhões de mulheres ao redor do mundo – é Elizabeth, uma atriz de certa idade que hoje ganha a vida com um programa de televisão de dança/ginástica. Apesar de ainda admirada, determina-se que ela atingiu a sua data de validade. Está velha demais para o trabalho. Não importa o que tenha feito, sacrificado, como esteja, ela já não serve mais para nada. Esse exagero é o tom do longa, que entrega a representação do patriarcado ao produtor do show, Harvey, um Dennis Quaid para lá de histriônico. Inconveniente, sórdido e aproveitador, ele é uma figura que afasta desde o primeiro momento. Porém, o incômodo com sua persona não se dá por suas ações ou palavras nojentas, mas pelas sensações reais que elas trazem à tona. Para além do homem, e de todos os homens que ele representa, há também a indústria do entretenimento, com toda a sua crueldade e capacidade de apagamento.

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Elizabeth não vai sendo minada, ela é destruída rapidamente. Da mesma maneira que some para os outros, vai sumindo para si, a ponto de não se reconhecer mais. O sentimento por si mesma vai se deteriorando. Odiando aquilo que naturalmente se tornou, porque envelheceu, ela deixa de querer ser ela mesma para voltar a ser o que foi um dia. Quando a protagonista se olha no espelho, é possível ver também Moore e lembrar as suas Erin Grant de 1996 ou a Madison Lee de 2003, e pensar em para quantos e quais papéis a atriz tem sido chamada ultimamente. A camada mais dura de A Substância, porém, vai além de Elizabeth e Moore. Nesse mesmo reflexo outras também se encontram, e elas estão fora da tela. Pode ser difícil assimilar que um filme fantasioso e com tintas exageradas esteja tão próximo da realidade, mas Fargeat consegue com sua mistura de metáfora do corpo jovem e resgate do melhor do terror despertar sentimentos que são muito difíceis de ser explicados e traduzidos.

O roteiro, também assinado pela diretora, chega a pontos muito específicos do envelhecimento da mulher nesse mundo. O  jogo de Sue e Elizabeth se desenvolve entre passado, presente e futuro; está entre o desejo e a realidade. Há muita expectativa, ansiedade e raiva numa relação que sempre foi consigo mesma. Em um lugar fictício de coexistência, a vontade de voltar ao passado e o ódio do que se tornará no futuro se encontram na violência e em uma luta que, literalmente, parece não ter fim. E é incômodo chegar onde o filme quer levar. No extremo gráfico daquilo que se vê, reconhecer em si algo absurdo, identificar dentro de você uma raiva que está ali, sempre esteve, mas nunca deveria ter existido. 

Consequência posta, parte-se então para a causa, e é quando A Substância mergulha na crueldade do padrão, no culto à imagem, na objetificação dos corpos e na indústria que está por trás de tudo, em especial, das duas protagonistas do longa. Lembrando uma menina bem conhecida, a criatura de Fargeat executa sua vingança que não é só dela contra aqueles que representam tudo isso. Não que consiga se libertar, se ver de outra maneira ou mudar tudo. Ainda assim, fica o recado. E que pancada.

Um grande momento
A luta sem fim

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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