Crítica | Festival

Ainda Não é Amanhã

Força, substantivo feminino

(Ainda Não é Amanhã , BRA, 2025)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Milena Times
  • Roteiro: Milena Times
  • Elenco: Mayara Santos, Bárbara Vitória, Clau Barros, Cláudia Conceição, Guta Menelau, Lalá Vieira, Mário Victor, Okado do Canal
  • Duração: 77 minutos

Muitas vezes (ou no meu caso, em grande parte das vezes), o cinema tido como naturalista acaba por conseguir uma reverberação maior do que propostas cheias de camadas. Não estou advogando contra o cinema de gênero, ou uma fórmula mais próxima ao risco; o cinema brasileiro, em particular, não tem encontrado limites para a excelência, em dispositivos de naturezas díspares, muitas vezes. Tenho uma ideia de que essa produção menos “posada” possui graus de complexidade emocional e estética que não podem ser substituídos por outros elementos que não o humano, recheado de mais humano ainda. Ainda Não é Amanhã já passou por alguns festivais e ao encontrá-lo no Panorama, meu sentimento é o mesmo de alguém que recebe um presente da qual não tem muita certeza das texturas; elas se revelam e empreendem o todo a cada novo lance. 

Esse é um daqueles filmes onde, talvez, uma cena solitária não represente muita coisa para o coletivo de imagens e narrativa. Talvez não consigamos extrair um momento maior do filme, e isso muitas vezes é sintoma de unidade, exatamente como aqui. Ainda Não é Amanhã conta a história de Janaína, uma adolescente de 18 anos, estudiosa, bolsista na faculdade, que vive com a mãe e a avó na periferia do Recife. Excelente aluna, amiga para todas as horas, Janaína tem um namoro igualmente plácido, até descobrir uma gravidez obviamente indesejada. Em uma escalada de terror tão solitária quanto prosaica, a menina se vê assombrada com a possibilidade de gradativas perdas para o seu futuro. Acima de tudo, é isso que ela vê e mira: o futuro. E nele não cabe a repetição da história de sua família. 

O desejo de Janaína pela sua individualidade quando todos os sinais apontam positivamente para ela deveria ser o suficiente para entendermos seu desconforto, desespero e decisão. Mas estamos no Brasil, em 2025, e nada parecido com uma interrupção de gestação é visto com bons olhos por uma sociedade que deixa o patriarcado falar mais alto em algumas questões, e essa é uma delas. Ainda Não é Amanhã espanta por colocar tanto significado em uma sororidade que não precisa e não é gritada; ela simplesmente é – até o fim. E se isso é um tema desvalorizado em sua pequenez, aí o problema não é do filme ou de sua autora; político até o talo e com um roteiro bastante sofisticado na maneira como montar as situações e sua eventual cadeia de acontecimentos, o filme parece ser uma resposta a um assunto que ninguém tem muito interesse em debater. Será por ser essa uma questão que compete exclusivamente ao corpo da mulher? Não acho que exista coincidência. 

A fotografia aqui é de Linga Acácio, de Estranho Caminho, e podemos dizer que existe uma luz repleta de naturalismo e uma dose precisa de personalidade. É esse campo de imagens que nos situa dentro desse espaço cada vez mais sufocante, encerrando um enquadramentos cada vez mais próximos à sua protagonista, exigindo do espectador mais do que cumplicidade. A montagem de Marina Kosa contém essa provocação de ritmo, que trabalha num crescendo de tensão, que nunca parece ter sido construída antecipadamente. Esse é um dos melhores casos porque quando percebemos, já estamos afundados no enredar dos desdobramentos de uma colocação a priori bastante frugal, mas que é um retrato incisivo da vida e das cobranças sociais em torno de grupos periféricos, e como a mulher ainda é setorizada como ser menor, menos potente, e por isso mais carente de soluções. 

O trabalho que compete ao elenco se assemelha ao que pede Ainda Não é Amanhã em seu escopo de compreensão. Ninguém está em cena tentando crescer além do tamanho do que Melina Times imaginou. Diretora e roteirista, Times organiza seu elenco nesta mesma frequência da delicadeza, que contrasta do que vai entrando como intruso a esse universo. Nunca é uma ameaça explícita que seus botões sejam apertados, mas um caminho social de negação de possibilidades. No centro da espinha dorsal, Mayara Santos cria um manancial de solidão e despreparo que nos conecta a tudo que é mostrado, onde sua interpretação acaba por servir como espelho dessas negações ao feminino, que vão efetivamente as deixando em local análogo a solitária de uma cadeia, onde a liberdade também é ilusória. 

Que o papel masculino pareça ingrato e mal costurado ao resto, isso é da intenção do projeto, ainda que o perfil definido por Mário Victor seja exemplar. No momento preciso, o abandono sempre parece uma solução mais rápida de ser tomada. Quando não vemos o personagem em cena, gradativamente, até que tenhamos a consciência de que ele verdadeiramente abandonou a narrativa, é que o horror de Ainda Não é Amanhã se torna mais real, acentuando todo o redor da protagonista. Não há ninguém, não há apoio… até que o desfecho comece a fechar bem antes do que vemos. Se procurarmos um pouco mais, não há namorado, mas há mãe, avó, Kelly, Giovana, sua professora, estão todas por Janaína. Até o fim. 

Um grande momento
Os cinco minutos finais – incluindo os créditos na voz Dela

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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