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O Balconista 3

Perdas e ganhos

(Clerks III, EUA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Comédia
  • Direção: Kevin Smith
  • Roteiro: Kevin Smith
  • Elenco: Brian O'Halloran, Jeff Anderson, Rosario Dawson, Trevor Ferhrman, Austin Zajur, Marilyn Gigliotti, Amy Sedaris, Jason Mewes, Kevin Smith
  • Duração: 95 minutos

A geração de cineastas que eu vi nascer parece ter caído em si a respeito da inevitabilidade da passagem do tempo, e com isso está produzindo as histórias possíveis diante de uma ideia de finitude. Não teria como ser diferente de tema que parece estar se repetindo nos meus textos, mas que vejo como uma confirmação geracional diante de um assunto que intriga desde sempre: o que se perde e o que se ganha com a passagem dos anos? Kevin Smith é uma dessas pessoas que acompanhei o surgimento, o auge e a… queda (?), e que retorna mais uma vez aos amigos Dante e Randall em O Balconista 3, cinessérie que começou há 30 anos, e que ainda perdura pelo óbvio amor que seu autor tem por todos ali. 

Além da minha relação pessoal com o Senhor Tempo já dissecada constantemente durante minha trajetória crítica, essa franquia específica conversa comigo pelos mesmos motivos que conversa com Quentin Tarantino, por exemplo: ambos fomos atendentes de vídeo locadora, o comércio ao lado da loja de conveniência onde se passa a ação central. Essa também era a ocupação dos protagonista da produção original, como o título já diz, que começa a migrar no título anterior para um lugar maior, e o que tinham de personalizado, começa a se perder. Já existia uma melancolia pela passagem do tempo no título anterior, mas agora essa é a mola que move a narrativa, e que reconfigura as relações entre todos os personagens. 

Que o filme abra com um princípio de infarto sofrido por Randall, e que sejamos arremessados na direção do My Chemical Romance embalando as cenas iniciais, já deixa explícito que um tempo já se perdeu, e possivelmente estamos diante de possibilidades de fim no horizonte. Confrontados com uma rememoração constante, seja pela tentativa de revisitar um passado em sua reprodução, ou em encontros frequentes com os próprios fantasmas de um outro tempo, O Balconista 3 consegue um feito raríssimo em qualquer tempo – manter o sarcasmo que é a predominância da série, apostar em rasgos de humor que vão desde a fineza até o extremo do nonsense e que funcionam na maior parte do tempo, e abraçar uma melancolia que só será compreensível em sua totalidade por contemporâneos aos seus personagens. 

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O passado escorre pelos dedos da dupla de protagonistas, e eles passam então a não apenas refletir sobre o que não é mais possível mudar, como tentam investir em uma modulação contrária, capturando o máximo possível de suas memórias. Não é algo simples de acompanhar, porque também temos em cena uma ponte para a metalinguagem, além de uma espécie de auto elegia; parece muito, mas tudo está concatenado. Não é como se Kevin Smith estivesse (apenas) louvando a si mesmo, mas principalmente é o autor tendo a consciência de que ciclos precisam ser encerrados, e não apenas na arte. Como a observação de um campo de proteção criado pelo saudosismo, que é uma moeda cada vez mais valiosa, mas que só tem serventia quando se percebe que trata-se de uma batalha perdida, na qual só podemos tentar acessar mas nunca domar. 

Brian O’Halloran e Jeff Anderson são dois exemplos de como a série de Smith trabalha com uma semântica aprisionadora. Eles não tiveram qualquer destaque fora de Dante e Randall, e observar esses 30 anos encapsulados em três produções, onde foram dos 20 aos 50, tem tantas notas agridoces quanto possível. Claramente hoje estamos diante de atores melhores do que os que conhecemos em 1994, mas também não coube a eles algo parecido com sobrevivência em uma indústria que eles mesmo sempre criticaram em seu filme-carreira. É sintomático o que acaba saindo de sua vontade de filmar o que seria suas vidas, e encontrar mais um sentido para a melancolia, que já não cabe apenas na obra, como em quem ela afeta diretamente. 

Com dezesseis filmes em uma carreira de altos e baixos, onde tanto foi celebrado como em Procura-se Amy como achincalhado em Menina dos Olhos, Kevin Smith aqui reúne seu melhor arsenal, com a vivência necessária para rir (muito!) do que é possível, mas também deixar as mais sinceras lágrimas rolarem pelo que não tem remédio. É um amadurecimento que só está presente no autor, e que bom que está, embora ainda compreenda que seu lugar é em outra estirpe. Ao acabar O Balconista 3, temos a impressão de que existe um novo diretor por aí, que nunca deixou de questionar costumes e personagens ou filosofar (sobre grandes temas ou no botequim), e cujas prioridades encontram eco com o presente. Agora, é tempo de recapitular para não deixar a saudade tomar conta de tudo, e recuperar o que ainda existe de vida ao redor. 

Um grande momento

O infarto de Randall

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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1 Comentário
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João Paulo Félix
João Paulo Félix
28/02/2023 22:09

Excelente análise! Clerks III é o meu filme favorito de 2022. Você já viu “Jay and Silent Bob Reboot”? Gostaria de ver esse filme analisado aqui, se possível. Eu adoro os filmes de Kevin Smith. Um abraço.

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