Crítica | Festival

All the Beauty and the Bloodshed

Museu de grandes novidades

(All the Beauty and the Bloodshed, EUA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Laura Poitras
  • Roteiro: Laura Poitras
  • Duração: 111 minutos

O filme que assistimos hoje será outro amanhã. Essa máxima raras vezes foi tão acertada quanto na saída da sessão de All the Beauty and the Bloodshed, sessão-surpresa da 46a. Mostra SP, e vencedor do último Leão de Ouro do Festival de Veneza. Com a sessão encerrada há poucas horas, o que assistimos é algo que será reverberado de maneira mais intensa em dias, semanas, meses. Porque não é fácil adentrar o universo que Laura Poitras encampa, dessa vez. As respostas não são fáceis do lado de fora porque também não o são do lado de dentro, quando a ideia é fazer uma ponte entre o nosso mundo e um de 50 anos antes, através do olhar (literalmente) de Nan Goldin, uma das fotógrafas de carreira e obra mais inusitadas dos Estados Unidos. 

Há oitos anos atrás, Poitras ganhou o Oscar (e mais um caminhão de prêmios) pelo registro de seu encontro com Edward Snowden em Citizenfour, uma pequena aula de cinema investigativo. Agora a investigação corre paralela por dois movimentos correntes, o hoje e o ontem, o público e o privado. No centro da narrativa, Nan Goldin há muito não é apenas mais uma fotógrafa das mais conceituadas e conceituais dos últimos 30 anos; ela se tornou um símbolo de luta contra grandes empresas farmacêuticas e seus patronos e donos. Quando All the Beauty and the Bloodshed a encontra pela primeira vez, ela está em pleno ato público contra seu inimigo n.1, a família Sackler e seu conglomerado de opiáceos e filantropia artística. 

Como Poitras revela, Goldin não caiu de pára-quedas nessa batalha contra uma das famílias mais bilionárias de seu país, patrocinadora de coquetéis que levaram ao vício e a morte de mais de meio milhão de americanos. Com muita propriedade, a diretora vai até o clã Goldin para entender a dinâmica familiar e conectar com uma linha finíssima os dois fios narrativos encontrados aqui. Acaba por assim se aproximar de um olhar moderno para o documentário, que se não é esteticamente arrojado, consegue compreender seus registros de imagem e montagem como um campo em branco. A partir desse campo, percebemos que cada nova exemplificação acaba atraindo ideias de exposição diferentes de um mesmo recorte de material. 

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Ao mesmo tempo em que investiga o vício incontrolável em remédios para fundos emocionais, que geram dependência química severa (inclusive com testemunho próprio), a artista reencontra-se com seu passado, mais precisamente com a família Goldin, para criar um painel de observação entre essas duas famílias. All the Beauty and the Bloodshed, na tradução literal ‘toda a beleza e o derramamento de sangue’, é um mergulho sem máscaras num mundo onde as pessoas seriam conscientes e não teriam filhos. Não pelo argumento tradicional, de acordo com o bem estar dos filhos, mas protegendo a si próprio, já que seriam pessoas incapazes de qualquer ato empático em relação ao próximo, ainda que seja o próprio filho. 

É com sua esperada dedicação e bom gosto na edição que somos apresentados a essa mulher incrível, que ousou tirar fotos de seus amigos em situações ultra naturalistas. Goldin, hoje, tem uma voz que a permite lutar contra o que acha errado, cobrando das autoridades a respeito do que acha premente. A beleza e o sangue estão presentes também dentro do seu núcleo familiar, que é implodido pela tragédia de ser inapto para a tarefa da criação. Nan e sua irmã Barbara viveram reféns de um amor que nunca existiu dentro de casa; por isso é tão forte acompanhar All the Beauty and the Bloodshed no começo de cada capítulo, onde surge sua criação como artista e como ser humano. 

Se parecia improvável, Poitras consegue, cena a cena, amarrar suas duas linhas narrativas à perfeição, quase tornando seus objetos um só. All the Beauty and the Bloodshed não perde tempo tentando justificar o injustificável. O que aconteceu entre sua irmã e seus pais criou um abismo entre todos, e acaba resvalando na história que Nan criaria para si no futuro, sem qualquer didatismo nessa união. Até a sua escolha pela fotografia foi uma saída para fugir do que seus pais a acusavam, ao justificar sua relação com a concretude da imagem. Vivendo em tempos de fake news, nada mais válido quanto sua justificativa profissional, o plano gravado se torna imortal. 

Repleto de um espírito de liberdade que pouco se vê hoje, os lugares onde Nan esteve, suas ocupações, o abraço que ela é compelida a dar na comunidade LGBTQIA+ nos anos 70 e 80, a forma como suas imagens mudaram um conceito de estética e de pensamento imagético, tudo isso a compõe. All the Beauty and the Bloodshed é um manifesto de reverberação, visual ou emocional, que nos pega de maneira exasperante dentro desse caleidoscópio de imagens do passado de Nan, enquanto fotógrafa, filha ou irmã, que acaba por ser mais sedutora que o filme político que também se abriga ali. No entanto, o filme do passado é quem dá ao filme do presente toda sua relevância e caráter revolucionário, mais uma vez pra ela. 

Um grande momento
O discurso de David no microfone

[46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo]

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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