Anna

Mulher vilipendiada para validar o discurso... mais uma vez

Se a ideia era fazer das tripas coração, provocando desconforto genuíno na maneira com que a câmera ou o personagem masculino/diretor teatral perseguem a atriz casta depois demonizada, pois obscuro objeto do desejo em cena, Anna atinge com louvor esse objetivo torpe.

Enquanto filme, Anna de Heitor Dhalia (de O Cheiro do Ralo), coloca vestes modernosas para, a partir das tragédias virulentas de Shakespeare, expressar uma “relação que ultrapassa a fronteira da criação e expõe o limite entre o desejo e a ética”. A parte grifada seria a storyline, da qual o filme é matéria diametralmente oposta. Porque se é para ilustrar imageticamente que Hamlet/Arthur (Boy Olmi), o velhaco diretor teatral, não ama sua musa recém saída da adolescência, Ofélia/Anna (Bela Leindecker), mas sim a manipula para alimentar seu ego e sadismo, pra que fingir um engajamento com pautas feministas ao invés de admitir que se tentou fazer um filme sobre inspiração e obsessão pouco inspirado, que só provoca raiva e aflição?

Se a tragédia da mágoa ou da vingança é Hamlet, o roteiro cinematográfico de Heitor e Nara Chaib Mendes é uma régua desastrosa na construção narrativa do filme alicerçado na indigesta relação diretor-atriz. E, diferente da basilar peça trágica do bardo inglês, que nuança os desejos e pavores de Hamlet, Ofélia, Horácio, Claudius, Gertrudes e Polônio, o existencialismo e a aferição da loucura a partir de fricções e situações onde os personagens denotam raiva e sofrimento, em Anna apenas à personagem-título é infligida dor.

Injustificada, a ruína e humilhação de mais uma personagem feminina no cinema obedece a visão do autor e haja mansplaining e assédio falseado como sedução professoral no arco de ascensão e queda de Anna. “Para ser Ofélia a atriz tem que ter vivido uma relação louca, obscura e ao mesmo tempo manter a ingenuidade que você tem”, diz Arthur umas duas cenas antes daquela em que leva sua presa para o matadouro e, entre jogos cênicos e de persuasão, a come. Antropofagica e sexualmente, ele condiciona a preparação, os ensaios e o treinamento para ela experienciar e ser a trágica heroína hamletiana em vida.

E é um deslize decorrente de uma falta de visão que cada enquadre do rosto lindo de Bela Leindecker (da série Desalma) só exprima sofrimento, lividez e pavor. A Ofélia de Anna não tem anima, compõe a paisagem como a Ofélia morta no lago e imortalizada por John Everett Milais. À atriz nunca é permitido conduzir suas ações mas sim se condiciona a aceitar as perversões do homem genioso “em nome da arte”.

Anna pode até intencionar, trazer aqui e ali falas desconexas — em algumas cenas muy verborrágicas — das personagens bradando feminismos, mas em nenhum momento o filme questiona o assédio ou a opressão, deixando, sim, o predador sexual agir e encurralar sua lolita, em cenas grotescas de sexo e em elaboradas representações — já no palco — de passagens da tragédia Shakespeariana com uma roupagem minimalista pós-modernosa.

Em entrevista na época do lançamento do filme no Festival do Rio 2919, Dhalia definiu seu filme como “uma experiência artística e estética bem radical”, porém, a proposta não guarda nenhum radicalismo, apenas a misoginia de sempre no trato com esses signos e personagens… Homem velho emasculado e mulher jovem, que significam a mesmice de lá da antiguidade clássica até os filmes doentios de Polanski (como Lua de Fel), Louis Malle (Perdas e Danos) e do incensado gênio que estrela e dirige/escreve aquela alegoria sexista que é Manhattan ou Poderosa Afrodite, todos sem alcançar a profunda sutileza de Satoshi Kon em Perfect Blue (devidamente corrompido, quer dizer, ocidentalizado, em Cisne Negro).

Eduardo Coutinho havia feito uma incursão maestra no universo e na rotina criativa e humana de uma companhia de teatro em Moscou, o Grupo Galpão a época dirigido por Enrique Diaz. Mas certos críticos de cinema vangloriam a colisão entre cinema e teatro para representar “a precisão na investigação dos desencaixes” em Anna, tal e qual em um outro filme de Malle, Tio Vanya Em Nova York; pela clara incapacidade de deserotizar um relacionamento tóxico. É impossível assistir impassível aos abusos “geniais” de Arthur e a passividade de Anna. Ou talvez ser mulher seja um impeditivo para compreender e laurear o gênio de cineastas que vilipendiam mulheres figurativamente para expressar a potência do seu discurso fílmico.

“Diretores… eles querem atuar junto”

Mas, dentre erros contumazes em termos de encenação e costura da progressão do drama em cena e na materialidade do filme cênico, Anna tem acertos que rendem afetos por si — pela experiência de assistir. A interpretação de Gabriela Carneiro da Cunha é o elo emocional que o filme de Dhalia mantém com o público

“Puta, nunca te amei de verdade!
Mas me fizeste crer que sim.”

O sarau bat macumba é a típica (e patética) visão paulistana artsy com sua encenação “queer” de Romeu e Julieta, onde o ciúme e a faceta mais grave da personalidade predatória de Arthur dá as caras. Quem surge nessa mesma cena como Hamlet — ou Ricardo III — batendo panela é um talento que merece um olhar atento, o ator brasiliense Túlio Starling.

Em realidade, Anna traz um enredo canônico e trágico que entrevê a ruína do homem emasculado pela jovem mulher que espezinhou e picotou apenas para fazê-la florescer.

“Força, Ofélia, vive”

Anna/Ofélia luta ao longo do terceiro ato para que seu desfecho não seja sucumbir e se afogar no ego do diretor. Ela transa, mija, encena e grita. O grito é o respiro de vida. Como diz o príncipe Hamlet, se dirigindo a sua plateia ou corte: “são espectadores pálidos de cenas grotescas” que assistem a peça e ao filme que se interpõem. E Anna, o filme, não se ressente em macular a instância espectatorial, pesando no olhar sobre a experiência ficcional ao trajar a mortalha escura morosamente.

Um grande momento
Calando o amor

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