Série em Cenas

Vale o Escrito: A Guerra do Jogo do Bicho

Coisa nossa

(Vale o Escrito: A Guerra do Jogo do Bicho, BRA, 2023)
  • Gênero: Documentário
  • Criador: Ricardo Calil, Fellipe Awi
  • Canal: Globoplay
  • Temporadas: 1
  • Duração: 45 minutos

O foco de Vale o Escrito: A Guerra do Jogo do Bicho, série documental mais assistida da Globoplay em seus dez anos de existência, é nitidamente o poder.  Não apenas na sua forma ostensiva, mas no resíduo que ele deixa. Nos contratos, favores, silêncios e alianças. A produção mergulha no submundo do jogo do bicho no Rio de Janeiro a partir da década de 1970, e o que vemos não é só a crônica de um crime singular,  é um mapa da rede mafiosa que existe até hoje.

O que torna a série potente é a forma como o consentimento se confunde com a rotina. As famílias tradicionais da contravenção e os investidores do carnaval que definiam territórios compõem um tabuleiro onde o que importa não é o lance isolado, mas o sistema. A câmera não se limita ao palco do conflito, acompanha a burocracia, o gesto de favores, o pacto tácito que permite que a ilegalidade se disfarce de normalidade.

Aí entram os Garcia. Maninho, o presidente da escola de samba Acadêmicos do Salgueiro e banqueiro violento do jogo do bicho, não aparece apenas como arquétipo.  Vale o Escrito traz o seu nome como chave da disputa. Suas filhas Shanna Garcia e Tamara Garcia são retratadas na herança da contravenção, nas brigas por bens, nos atentados e no silêncio que segue às explosões. A disputa fratricida dentro do clã Garcia torna visível o que o documentário pretende: o crime que sobrevive porque se naturalizou, porque se instalou em lares, em legados, em registros de família.

Vale o Escrito também não ignora o entrelaçamento com milícias e poder político. O nome de Adriano da Nóbrega (não sozinho) surge como lembrança de que contravenção, milícia e aparato estatal às vezes habitam o mesmo espaço. O retrato do Rio contemporâneo revela um sistema de poder que não termina nas bancas de jogo, mas se estende a grupos paramilitares e a figuras que orbitam a política institucional, incluindo personagens próximos à família Bolsonaro. O documentário costura essas conexões sem precisar sublinhá-las, elas se impõem pela sobreposição de imagens e depoimentos.

No centro das disputas mais recentes, a guerra entre Bernardo Bello e Rogério de Andrade escancara como o império do bicho sobrevive pela força e pela imagem. De um lado, a nova geração que tenta se legitimar como empreendedora; de outro, o herdeiro que carrega o peso de uma linhagem. É um embate que mostra que o jogo nunca foi apenas sobre dinheiro, mas sobre poder, vaidade e domínio simbólico de uma cidade inteira.

Esteticamente, Vale o Escrito adota o tom de investigação histórica, mas sem se deixar aprisionar pela aridez documental. O risco formal está no entre-lugar entre o arquivo e o depoimento. Esse espaço revela que o que permanece mesmo quando o crime evapora são as estruturas que o sustentam. A narrativa se expande em camadas de tempo, tendo os anos setenta como origem, os acordos travados como herança e o presente como palco de sobrevivência.

E há irregularidades. Alguns capítulos que se alongam sem acrescentar à narrativa, entrevistas que insistem em repisar o status de poder em vez de escavar o humano, e uma certa reverência que o tema demanda e a série nem sempre questiona. Mesmo assim, essas falhas quase não importam porque a curiosidade é maior. O espectador se vê atraído não só pelo “quem fez o quê”, mas pelo “como isso continua”. É essa pergunta que sustenta o interesse.

A grande virada da série está em colocar o espectador junto dos contraventores, não para ver seus crimes, mas para entender a dinâmica, a rotina de poder, o contrato invisível que liga a ilegalidade ao cultural. E, ao permitir que ele entre, ela muda o olhar. O que vemos nas patrulhas de máquinas caça-níqueis, nas armas que circulam entre bancas, nos desfiles de escolas de samba financiados por vozes que falavam de carnaval e cobriam negócios obscuros é o cotidiano da máfia que se instalou.

O que fica é o incômodo de saber que o poder não se revela apenas no confronto, mas na sombra que resiste ao escândalo. A série não encerra com moral nem sugere saída fácil, ela deixa a inquietação de que o jogo continua. Vale o Escrito não é apenas sobre o crime, é sobre aquele que observa, que escuta, que aposta no invisível. É sobre o país que, ao tentar entender o poder, continua fascinado por ele.

Melhor episódio
T1E6: Rogério Andrade: tiro, porrada e bomba

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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