- Gênero: Drama, Horror
- Direção: Luca Guadagnino
- Roteiro: David Kajganich
- Elenco: Taylor Russell, Timothée Chalamet, Mark Rylance, André Holland, Chloe Sevigny, Jessica Harper, Anna Cobb, Michael Stuhlbarg, David Gordon Green
- Duração: 130 minutos
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Luca Guadagnino continua construindo uma filmografia impecável, quase sempre descolada do realismo. Para quem colocar um filme como Me Chame pelo seu Nome dentro dessa roupagem, tenho de contrapartida o fato de que, assim como esse novo Até os Ossos, a produção se passar 40 anos atrás, o que já o descola de uma vertente realista, a partir do momento em que observa e fabula em cima de referências e dados do passado. Mas assim como visto na sua reimaginação de Suspiria, mais uma vez ele se embrenha em códigos atrelados ao horror para construir sua narrativa, e assim como os melhores exemplares do cinema de gênero, se valer dele para reconfigurar questões siderais de todos os tempos, como a busca por um vetor de afeto num mundo avesso a ele.
Aqui, não demora 10 minutos para que saibamos que tem algo de errado com Maren. Mas é preciso mais alguns tantos para que percebamos que seu apetite é ainda mais voraz pelo que nunca teve. Abandonada pela mãe na infância e pelo pai no fim da adolescência, com quem só conseguiu construir planos de fuga, a jovem mulher sai sem rumo em busca da mulher que não conheceu para tentar conhecer a mulher que enxerga no espelho, e que desconhece a cada dia mais. Com um prosa fácil de sedução inegável, Até os Ossos em tudo se reconhece uma adaptação literária, dos diálogos fluidos que nascem no decorrer da estrada até a fita cassete que a protagonista ouve contando parte de sua própria história.
Como em todo bom filme, onde especificamente essa citação cabe sem sutileza como nos ‘road movies’, o melhor aqui não é destino, mas literalmente os pontos de paragens pelo qual Maren, obrigatoriamente ou não, precisa desviar para chegar onde quer. Se isso é um clichê dos mais utilizados, nesse caso também funciona como uma verdade irrefutável; os encontros de Maren com homens (e uma óbvia mulher) pelo caminho a ajudam, sem que ela se dê conta, de que está sim aprendendo sobre sua própria condição, sobre suas deficiências, sobre as ausências do qual ela não consegue suprir. E como estar na pele onde está propiciou esse tanto de informação vaga e desencontrada – que a protagonista seja uma mulher negra soa como um achado muito valioso, que entrega ainda mais responsabilidade dramática ao seu manancial de metáforas e referências.
Como visto no Raw de Julia Ducourneau, Até os Ossos poderia facilmente conectar à sua narrativa esse outro clichê do horror – o desabrochar de uma jovem mulher, metaforizada na descoberta da sexualidade e do primeiro ciclo menstrual – mas o filme sai pela tangente em busca de algo em outra vertente psicológica. As muitas ausências pelo qual um ser humano tangencia para que seja abraçado como um ‘outsider’ pela existência, e enfim se entenda como tal, sem maiores traumas, é o lugar que a autora do livro em que se baseia, Camille DeAngelis, já aborda. O roteiro do habitual colaborador de Luca, David Kajganich, abraça essa ideia para centralizar Maren, e sem horizontalizar todas as carências em cena, tenta sim mostrar um universo à parte onde esses seres descolados da moral se encontrem em um mesmo local, ainda que por vias diferenciadas.
Mesmo com 130 minutos de duração, há de se imaginar que DeAngelis foi mais completa do que Até os Ossos apresenta ao espectador. Sem convergir em um problema, de forma alguma, o filme acompanha a protagonista em sua busca por reencontrar a mãe, e pelo caminho esbarrando com outros tipos tão carentes e ‘famintos’ quanto ela. Desses encontros, sem uma ordem sublinhada do roteiro ou sem explicitar seus motes, Maren esbarra em situações que desenham com precisão o lugar onde ela se encontra, e os rumos pelo qual ela vai esbarrar vida afora, aplacando ou não essa sede incontrolável. São personagens pontuais mas que montam um mosaico preciso a respeito do que pode referenciar uma ausência – o Estado, a geografia onde o indivíduo é gerado, o núcleo familiar, a ajuda necessária para não perceber que sua diferença é sinal de perda da razão. Imagina-se ainda que no livro tenhamos mais conhecimento de outros desdobramentos e encontros de Maren pela estrada, mas o que já vimos aqui é suficiente para compreender um universo gigantesco de personagens derivados da mesma condição.
Se você é uma mulher então, o desajuste pode (e ainda hoje é) ser visto como uma condição marginal, que a afaste do que a sociedade encara como um projeto social típico para a mulher – casar e ter filhos. O que realizam Taylor Russell em imenso grau, e Chloe Sevigny de maneira pontual, é uma definição metafórica do lugar onde uma mulher não deve estar, em posição questionadora dos valores lançados na direção de qualquer mulher. São atrizes especiais, ambas em atuações esplendorosas, capazes de transmitir essa carga de exigência, incredulidade e fracasso que assolam as mulheres, mas também qualquer outro que esteja em posição de ruptura social, e que a qualquer escorregão podem acabar em papel de párias.
Com participações ainda delicadíssimas de Timothée Chalamet, Michael Stuhlbarg (ambos vindos do premiado Me Chame pelo seu Nome, que é referenciado aqui, de maneira sutil) e especialmente Mark Rylance (Oscar por Ponte de Espiões) mais uma vez provando ser um ator gigantesco, Até os Ossos é um drama de horror sutil e ainda graficamente assustador. Guadagnino constroi cada plano com a crueza que sua história pede, sem paternalismo e sem edulcorar as situações. Também demonstra uma habilidade impressionante em criar momentos arrepiantes, sem nunca deixar claro o que irá acontecer, ou mesmo se irá. É um filme de terror sim, mas pra ‘gente grande’, recheado de uma sutil psicologia que reconta os lugares onde o aconchego brota, das maneiras mais brutas possíveis.
Um grande momento
Muitos, imensos, mas vou apontar… Jake e Brad