Crítica | Cinema

Rodeo

A toda velocidade

(Rodeo, FRA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Lola Quivoron
  • Roteiro: Lola Quivoron, Antonia Buresi
  • Elenco: Julie Ledru, Antonia Buresi, Yannis Lafki, Cody Schroeder, Louis Sotton, Junior Correia, Ahmed Hamdi, Dave Nsaman, Sébastien Schroeder
  • Duração: 100 minutos

Há de se aplaudir a coragem de Lola Quivoron, diretora e roteirista de Rodeo. O filme nos apresenta a Julia, sua protagonista, uma personagem com a qual o espectador terá uma baita dificuldade em se conectar e simpatizar. Isso porque o filme nos joga no meio do rolo compressor que é a vida da jovem mulher, que mente, rouba (rouba muito!), engana, vive em constante atrito com quem quer que seja, não respeita nada nem ninguém, enfim… entende-se por completo a antipatia por Julia. Na metade da produção exatamente, ela solta mais de suas frases explosivas: “eu não preciso de dinheiro, porque eu roubo tudo”. Ainda que sirva para lhe conferir ainda mais pontos contra, a esse momento já a conhecemos o suficiente, e dessa afirmação, sua conotação e sua entrega, rebusca uma mulher que não tem (e talvez nunca tenha tido) nada a perder. 

Essa é a estreia de Quivoron em longas, tendo apenas dois curtas anteriores. Com apenas 33 anos, saiu premiada da Un Certain Regard no último Festival de Cannes, e o filme demonstra sua força aos poucos, em banho maria. Narrativa e graficamente, é um projeto construído sem pressa, acreditando que o espectador vai se deixar levar pelo arsenal de eventos ininterruptos nas quais a protagonista se envolve. A coragem já citada é também porque seria fácil desistir de uma produção que é tão verdadeira com sua personagem central, ao não vendê-la como acessível ou possível. Ao cozinhar lentamente a virada emocional de Julia, o filme aposta também no talento de Julie Ledru, igualmente estreante, cara e corpo de uma personagem muito arriscada. 

Com um roteiro até convencional, Rodeo tenta apostar no estudo de personagem para angariar pontos para a produção. Em cena, temos uma atividade até pouco acessada (o amor incondicional de alguém pelo universo em duas rodas), mas que resvala em um recorte mais tradicional a respeito de um sujeito à margem da sociedade por motivos que nunca se renovam, porém seguindo atuais. Quando não há oportunidades ou educação emocional, os seres encontram refúgio na delinquência como forma de vida e de realização social. Sem julgar seus tipos, o filme segue Julia ao encontrar um grupo de jovens rapazes unidos também pelas cilindradas das motos, por ‘pegas’ entre elas em pistas vazias, e em atividades ilícitas em uma oficina mecânica. 

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A despeito do envolvimento com o material, o que chama atenção em Rodeo é especificamente o desenvolvimento de Julia, pelo roteiro e por Ledru. De desenho misterioso, que enfatiza sua personalidade sem qualificar os motivos pelos quais ela está implicada em tantas armadilhas, não é fácil lidar com uma protagonista que faz de tudo para ganhar nossa desaprovação. Sua postura com a família, suas atividades deliberadamente criminosas, a forma como se coloca em relação ao próximo, o ar de quem tem certeza de que o mundo lhe deve algo… Julia não nos ajuda a ajudá-la. Mas existe sim uma fagulha dentro de si, e sua ferocidade por estereótipos começa a arrefecer ao conhecer Ofélia e Kylian, esposa e filho do chefão de uma quadrilha de ladrões de motos no qual ela se insere. 

A partir desse momento, Ledru consegue movimentar as peças a seu favor, se agarrando a uma fragilidade que anteriormente não era vista. A relação com essas duas pessoas, a sede de vingança contra um ataque que sofreu e o desejo de realizar um grande golpe acaba por traduzir novas curvas de personalidade para a protagonista, que passa a ser menos chapada. Além disso, o filme apresenta uma ideia de sobrenatural a partir dos sonhos de Julia, todos com elementos surreais, que parecem mandar mensagens para ela, que não são compreendidas a contento. Isso também ajuda a Rodeio Urbano a apostar numa paleta de cores mais quentes, quando o cinza começa a sair de cena para dar entrada ao vermelho e ao preto. 

Além disso, não falta a Rodeo, um filme com apenas duas personagens femininas e dirigido por uma mulher, uma questão de denúncia misógina grave. Julia é destituída de qualquer tipo de confiança desde o primeiro encontro com a equipe; que o espectador não confie nela, é compreensível, mas outros ladrõezinhos façam o mesmo, claramente é um apontamento narrativo. Ofélia é igualmente uma mulher oprimida pelo marido, que a domina de dentro da cadeia, impedindo-a de sair e de ter dinheiro. Que essas duas mulheres se encontrem, que respirem sororidade mútua, e que identifiquem suas carências, é um ponto do qual o filme não foge, e que sublinha com muita precisão esse filme repleto de uma corporalidade febril, que explode em uma cena final cheia de símbolos – a aceitação do corpo como potência superior ao material, e com pulsão de vida até seu auge. 

Um grande momento
Ao redor da fogueira

[46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo]

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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