Crítica | Festival

Calidris

(Calidris, BRA, EUA, 2019)

  • Gênero: Drama
  • Direção: Peter Azen
  • Roteiro: Peter Azen
  • Elenco: Yasmin Santana, Rodrigo Fischer, Laila Garroni, Thais Almeida Prado
  • Duração: 82 minutos
  • Nota:

Em relação a seu tema, acho que a primeira coisa a mostrar ao que veio em Calidris vem logo aos 10 minutos de projeção, depois de uma espécie de idílio inicial, que pode até parecer deslocado mas na verdade não passa de um respiro antes do furacão, é a apresentação de Jane no novo “emprego”. Como todo o filme, a relação de deslocamento que os imigrantes sentem está nas entrelinhas, apresentado de modo sutil. Nesse encontro com o dono da cachorrinha que ela irá cuidar, por duas vezes ela o corrige quanto a pronúncia correta de seu nome – não é Jenny, não é o anglo-saxão Jane, não… em versão portuguesa mesmo, Jane. Isso não pode passar despercebido pelo espectador, e é um indicador claro de como a personagem se vê e quer ser vista: ela é brasileira. Sem nomear qualquer ufanismo, o filme declara suas intenções.

O filme de Peter Azen não tenta criar um ambiente bonito ou esteticamente edulcorado ao tal american dream que foi ser vivido por quem embarca na aventura de ganhar dinheiro, seja nos EUA ou em qualquer outra parte pelo mundo. Quase constrangedor é o momento onde o senhorio chega para cobrar de Carlos o aluguel atrasado; esqueçam a visão cinematográfica dessa cena vista tantas vezes: não há briga, não há xingamento, não há ameaça, óbvio que não simpatia, apenas a secura. Não há tentativa de sair do desconforto mesmo, o homem chega, pede o dinheiro, pede pra não se atrasar de novo, não sorri e sai.

Calidris

Ficam as perguntas de sempre ao observar as sequências narradas acima a respeito dos limites do que é encenado ou não é em documentários, e não tem jeito, quando uma câmera é ligado, o adeus ao espontâneo é dado. Não há acaso quando existe uma câmera que capta a cobrança de um aluguel, mas a intenção de Azen é de não romantizar nada e não de não realizar um filme. Existe o filme, e dentro do escopo do mesmo, como retirar ao máximo as possibilidades de encenação aparente, sem jamais deixar de realizá-lo?

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Porém antes da metade, o diretor de Cacaya finalmente se faz presente. Azen, que estava entregando um modesto e delicado retrato documental sobre a imigração jovem, seus percalços, seu olhar e sua voz, dá lugar às propostas de experimentação que são a essência de autor. A princípio, podemos até imaginar uma dissociação entre as partes, mas quem já acompanha a obra do autor finalmente o reconhece, e percebe que ele começa então a falar sobre o mesmo que estava falando antes, agora com sua própria pele.

Calidris

A partir da quebra da quarta parede provocada por Paula Gaitàn (!!!), o projeto abre mão da experiência narrativa para se concentrar no jogo cênico performático que além de atestar também promova a brasilidade de Carlos e Jane a qualquer custo, Seja clamando por uma vocação terceiro-mundista para a América do Norte, seja estilizando uma Carmen Miranda masculina, seja oferecendo flores gentis no lugar dos tiros que infelizmente nos acostumamos a ver ligados aos Estados Unidos, Azen faz da Nova York que filma um palco multicultural tupiniquim.

Na última cena, o filme parece invadido por um curta metragem protagonizado e escrito por Laila Garroni. Sem dúvida bonito e emocionado, soa deslocado com o longa Calidris, no entanto. Parece uma chacoalhada de Azen não apenas no país, mas nos privilégios que ele também entende ter. Ele que também é um imigrante como seus personagens, e aqui enfim parece declarar amor não só ao país como também ao próprio desafio de desbravador, de culturas encapsuladas em outras, fazendo surgir o híbrido que seu cinema representa – a representação e a encenação.

Um grande momento
“Do you have my rent?”

[4º Ecrã]

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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